Desmistificamos a origem e as ramificações de um tema tão complexo, mas ao mesmo tempo tão rico culturalmente.
Desmistificamos a origem e as ramificações de um tema tão complexo, mas ao mesmo tempo tão rico culturalmente.
Viktor & Rolf, primavera/verão 2019 Alta-Costura @ Getty Images
Viktor & Rolf, primavera/verão 2019 Alta-Costura @ Getty Images
O que é que a arquitetura de Gaudí em Barcelona, as figuras assexuadas do movimento artístico Art Nouveau, o Lago dos Cisnes e as entradas do metro de Paris (desenhadas por Hector Guimard, em 1890) têm em comum? Camp, todas elas são Camp.
Mas a grande questão é: o que é significa de facto o conceito de Camp? O termo, que não tem tradução para a língua portuguesa, surgiu pela primeira vez em 1909, no Dicionário de Oxford, e está associado ao exagero, à teatralidade, à exuberância, à cultura gay, às drag queens. Mas, mais do que uma definição, falamos de uma sensibilidade. “Há muita coisa no mundo que nunca foi denominada e muita coisa, mesmo que tenha sido, nunca foi descrita. Uma delas é a sensibilidade - inconfundivelmente moderna, uma variante da sofisticação, mas dificilmente idêntica a ela - que dá pelo nome de Camp,” escreveu Susan Sontag, em Notes on Camp (1964) um ensaio que discute, em 58 pontos, as diversas conotações e a evolução deste termo como um fenómeno estético distinto.
A obra de Sontag é precisamente o ponto de partida para Camp: Notes on Fashion, tema da próxima Met Gala e da exposição anual do Costume Institute. Um acontecimento que catapultou o Camp para a atualidade. Levantaram-se questões sobre o que era, o porquê do tema ter sido escolhido, qual a sua pertinência e porque é que fazia sentido explorá-lo à luz dos dias de hoje. Numa entrevista ao The New York Times, Andrew Bolton, o curador da exposição, justificou a escolha do tema: “estamos a passar por um momento extremo de Camp, e pareceu-nos bastante relevante para o diálogo cultural, olharmos para aquilo que, muitas vezes, é descartado como se fosse uma frivolidade, mas que na verdade pode ser algo bastante sofisticado, bem como uma arma política poderosa, especialmente para as culturas que são marginalizadas (…) acho que é muito oportuno.”
Uma ideia corroborada por Eduarda Abbondanza, presidente da ModaLisboa: “fazendo um paralelismo com os dias de hoje, em que vivemos várias tensões culturais e políticas, Camp afirma-se novamente como um apelo à liberdade, à diferença e ao extravagante”.
Os primeiros passos de Camp na história
Alek Wek veste Erdem, primavera/verão 2019, para a Vogue Portugal de abril 2019 @ Hugo Comte
Alek Wek veste Erdem, primavera/verão 2019, para a Vogue Portugal de abril 2019 @ Hugo Comte
Foi na opulência da França de Luís XIV que esta sensibilidade se fez notar na plenitude, ou não tivesse sido este um período histórico marcado pela estética e a superficialidade (olá, Palácio de Versalhes.) Camp, aliás “surge do francês 'se camper', traduzindo-se em posar de uma forma exagerada, no contexto da corte de Luís XIV,” explica-nos Eduarda Abbondanza. Um exemplo visual é o retrato do Rei Sol, pintado por Hyacinthe Rigaud, em 1701, no qual Luís XIV surge com as vestes exuberantes e sumtuosas da sua coroação - um manto maior do que a vida em tons de azul com apontamentos dourados (muito semelhante ao amarelo que Rihanna usou em 2015), uma golas e mangas imponentes, uns sapatos com tacão para parecer mais alto e uns longos cabelos encaracolados, numa postura altiva, como sempre.
É na Inglaterra púdica da era Vitoriana que encontramos o primeiro registo escrito de Camp (anterior à inserção no dicionário, em 1909). Com data do ano de 1869, surge numa carta enviada por Frederick Park, um cross-dresser conhecido como Fanny, ao seu amor Lord Arthur Clinton. “Os meus comportamentos Camp não estão a ter o sucesso que merecem. Tudo o que faço parece meter-me em sarilhos,” escreveu Park. Fanny tinha um companheiro de cross-dressing, Ernest Boulton, conhecido como Stella. Os dois interpretavam personagens femininas no teatro amador e em saídas à noite. Numa dessas saídas, em 1870, os dois foram detidos ao saírem do Strand Theatre, acusados de conspirar e incitar as pessoas a cometerem ofensas não naturais. O caso seguiu para tribunal, mas depois de várias investigações foram absolvidos, uma vez que não se conseguiu provar que os dois se tinham envolvido sexualmente. À época, seria esse o seu maior crime, até porque um homem vestir-se de mulher no teatro era visto com algo natural. Mais natural e prestigiante do que uma mulher enveredar por uma carreira nas artes performativas.
O acontecimento, que muitos veem como o primeiro grande momento queer da história, foi recordado recentemente na passerelle da Erdem que, na coleção para a primavera/verão 2019, voltou a contar a história com uma série coordenados inspirados nas golas, nos folhos e no exagero vitoriano. “Muito além do entusiasmo compreendido pelo transformismo, eles eram indivíduos com coragem para explorar o poder da auto-expressão,” escreveu o designer nas notas de imprensa.
O Camp através das palavras de Susan Sontag
Peter Hujar (American, 1934–1987). Susan Sontag, 1975. The Metropolitan Museum of Art, New York, Purchase, Alfred Stieglitz Society Gifts, 2006 (2006.183). © 1987 The Peter Hujar Archive L.L.C.
Peter Hujar (American, 1934–1987). Susan Sontag, 1975. The Metropolitan Museum of Art, New York, Purchase, Alfred Stieglitz Society Gifts, 2006 (2006.183). © 1987 The Peter Hujar Archive L.L.C.
Estes dois momentos históricos serviram como ponto de partida para a introdução desta sensibilidade, mas a clareza veio com o ensaio de Susan Sontag. Nos 58 pontos, a autora aborda a parte estética, a sensibilidade e ainda reúne exemplos do que é ou não Camp. Num dos primeiros parágrafos de Notes on Camp, deparamo-nos com uma definição clara e direta, que explica que a essência do Camp é um amor pelo que não é natural, pelo excesso e pelo artificial. Mas Sontag não se fica por aqui e afirma que Camp é esotérico. Nas palavras da própria: “não é uma sensibilidade natural, se é que alguma sensibilidade o seja. Na verdade, a essência de Camp é o amor pelo não natural. Camp é esotérico - uma espécie de código privado, um distintivo de identidade.”
Mas o que é que define quem representa, ou não, Camp? À luz daquilo que a norte-americana escreveu, ser Camp é intencional, é o “estilo acima do conteúdo, a estética acima da moralidade, a ironia acima da tragédia.” Mas quais são os elementos chave? Para Cristina L. Duarte, socióloga e autora de Moda e Feminismo em Portugal (Temas e Debates, 2017), os “elementos chave são artifício, frivolidade, pretensiosismo ingénuo e excesso chocante. Para muitos, é considerado como um estilo e uma performance relacionada com a identidade, incluindo a identidade de género.”
E, para uma criar uma imagem visual de como é que o Camp se pode transformar em peças de roupa, há quatro pontos do ensaio de Sontag que ajudam a esclarecer: “Camp é uma mulher que usa um vestido feito de três milhões de penas” (número 25); “é demasiado, é demasiado fantástico, não dá para acreditar” (número 24); “é divertido, nada sério” (número 41); e ainda “Camp é bom porque é mau” (número 58).
Camp e Moda, um casamento perfeito
Schiaparelli Alta-Costura, outono/inverno 2018 © Getty Images
Schiaparelli Alta-Costura, outono/inverno 2018 © Getty Images
A verdade é que há muito que a Moda tem exemplificado aquilo que a estética Camp representa. Muitas das grandes tendências do momento - desde a ascensão dos ugly shoes às micro bags de Jacquemus - respiram Camp por todas as costuras. Rei Kawakubo, fundadora e responsável pela Comme des Garçons, deixou-se inspirar por esta sensibilidade na coleção de outono/inverno 2018, afirmando inclusivamente que estamos a precisar de um valor assim. “Não é uma coisa terrivelmente exagerada, fora do comum, ou de mau gosto. Esta coleção nasce do sentimento de que, pelo contrário, Camp é verdadeiramente uma coisa profunda e nova, que representa um valor de que todos precisamos,” lia-se no comunicado de imprensa.
Mas como é que de facto conseguimos traduzir esta sensibilidade para a Moda? “Quando falamos em Moda, falamos também em excentricidade, fantasia, sonhos, extravagância,” começa por explicar o designer Luís Carvalho. “No meu ponto de vista este tema é levar todos esses adjetivos ao extremo, e de uma forma até bastante literal. No fundo, é como uma maneira de brincar com a Moda em tom de ironia, paródia, teatralidade, excesso e extravagância.” Na perspetiva de Eduarda Abbondanza, “Camp pode ser traduzido em qualquer coisa e, atualmente, está presente em muito daquilo que nos rodeia. Vários autores trabalham este território, acrescentando valores e traduções deste universo. Por vezes associado a uma noção de estilo sem conteúdo. É uma estética de exagero, pormenores e referências. Uma recusa em crescer.”
É seguro dizer que estes dois universos, Moda e Camp, têm estado de mãos dadas. O que explica a envergadura da exposição do Met que vai contar com peças de Franco Moschino, Marjan Pejoski, Palomo Spain, Viktor & Rolf, Alessandro Michele para a Gucci, Virgil Abloh para a Off-White e Bertrand Guyon para Schiaparelli. Ao todo serão 175 peças que corroboram a ideia que Camp e Moda são um casamento perfeito.
A Met Gala acontece já no próximo dia 6 de maio, como sempre na primeira segunda-feira de maio, e a Vogue vai acompanhar o evento em direto.