Um rumor nunca é apenas um rumor — é uma fonte de interesse, de conversa, de vida. Precisamos dele para trazer agitação ao nosso dia a dia, preferencialmente se estiver ligado ao drama alheio, e a uma distância de segurança que não nos afete. Que tal dentro do pequeno ecrã?
Um rumor nunca é apenas um rumor — é uma fonte de interesse, de conversa, de vida. Precisamos dele para trazer agitação ao nosso dia a dia, preferencialmente se estiver ligado ao drama alheio, e a uma distância de segurança que não nos afete. Que tal dentro do pequeno ecrã?
Nos meus tempos de faculdade, havia duas grandes razões que me levavam ao campus: ir às aulas (embora esta fosse claramente secundária) e acompanhar as fofocas do dia com as minhas amigas. A rotina era sempre a mesma. Encontrávamo-nos no auditório, onde trocávamos olhares sugestivos enquanto tentávamos controlar o impulso de mandar uma mensagem para o grupo de WhatsApp e partilhar logo as novidades. Mas não o fazíamos, porque havia um ritual a seguir, que ditava que era durante a hora de almoço, passada na esplanada com um café na mão, que iríamos discutir o hot topic — que era sempre o mesmo. Ela não era exatamente popular entre os universitários, mas era conhecida de todo o grupo (através de amigos em comum e laços vindos do liceu que se enrolavam numa intrincada rede de relações sociais). Durante coisa de dois ou três anos, a Anita (nome fictício) namorou com o Filipe (idem). Eram o casal perfeito. E improvável, porque se conseguia perceber, sem sombra de dúvidas, quem era a settler e quem era o achiever. Ainda assim, tinham o que muitas de nós aspirávamos. Isto é, até ao dia em que soubemos por terceiros que a relação tinha acabado — do nada, sem qualquer razão aparente. Culpem o sexto sentido feminino ou só a curiosidade de saber os detalhes mais dirty das vidas alheias, o facto é que a hora de almoço se tornou no período designado para encontrar as respostas para esta breakup críptica. Cada uma de nós tinha as suas fontes e, juntas, sentíamo-nos invencíveis, como Thanos quando empunhou as cinco infinity stones num dos blockbusters da Marvel. Rapidamente percebemos que, afinal, a decisão da Anita não tinha sido assim tão repentina como deu a entender à comunidade universitária (que provavelmente seríamos só nós). E o Filipe não era o rapaz atento e carinhoso que mostrava ser — nesta verdadeira missão de espionagem, descobrimos que ele tinha problemas de raiva e que, mais do que duas ou três vezes, a tinha feito sentir-se ameaçada. Ele era, além disso, despreocupado e desdenhoso, e raras eram as ocasiões em que estava disposto a ouvir as queixas da Anita sem que explodisse numa birra de frustração. Arrogante e ligeiramente egocêntrico, não é de surpreender que tenha sido apanhado desprevenido com a rutura quando, a seu ver, estava tudo bem entre os dois. Resumindo, todas as semanas havia novos detalhes para completar a história que, lentamente, começou a fazer cada vez mais sentido — sentíamo-nos espectadoras de um drama que se estava a desenrolar em tempo real à nossa frente, sem que perturbasse as nossas vidas. Só mais tarde percebi que estava a seguir esta situação como quem assiste a Gossip Girl e se deixa mergulhar nos enredos teatrais do Upper East Side de Nova Iorque. A minha posição em ambos os contextos é bastante semelhante: serei sempre a espectadora não participante e estranhamente omnisciente.
Essa é a beleza da ficção, especialmente aquela que nos apresenta um puzzle que somos nós a montar, episódio a episódio. A paixão por este tipo de conteúdo intensifica-se ainda mais quando envolve relações interpessoais complexas e mesquinhas, já que estas são a fonte de todo o drama que é essencial para as nossas almas. Talvez seja rebuscado fazer a comparação entre gossip e mistério, mas não serão os boatos apenas uma versão mais popular dos segredos? Algo que nos propomos a seguir até à fonte para desvendar a verdade? E há algo que séries como Bridgerton, Pretty Little Liars e a icónica Gossip Girl nos dão — alimento para o ego. A lógica é até bastante simples: enquanto espectadores, somos todos poderosos, sabemos tudo, há detalhes acerca das vidas e ações dos personagens a que apenas nós temos acesso. No meio dos figurantes, nós somos superiores e estamos sempre um passo à frente — porque estamos presentes em quase todos os momentos da narrativa. Quando Nate Archibald dormiu com Serena van der Woodsen, antes do início da ação em Gossip Girl, nós soubemos da traição antes de Blair Waldorf e de qualquer outro envolvido. Quando a personagem interpretada por Leighton Meester falava carinhosamente do namorado, nós sabía- mos cá dentro que a relação dos dois nunca mais seria a mesma. Estudámos atentamente os passos de Nate e Serena, à espera de ver quem seria o primeiro a denunciar o erro. É inevitável que, enquanto espectadores, nos sintamos num claro patamar de superioridade. Porque conhecimento é poder.
Ainda assim, e por mais que nos agrade ganhar repetidamente a corrida até à verdade do rumor, a coisa perderia a graça se não houvesse um desafio. Por isso, omnisciência sim, mas não totalmente. É preciso deixar alguma coisa para a imaginação, senão what’s the point? E as séries que falem por si: a primeira temporada de Bridgerton foi um enorme sucesso porque o espectador tinha uma missão em mãos. Qualquer um podia ser a rainha do gossip, Lady Whistledown, por isso passámos os oito episódios a tentar apanhar todas as dicas e a criar as nossas próprias teorias. Só no final do último capítulo descobrimos quem é a cara atrás da alcunha, embora alguns possam ter resolvido o puzzle bem mais cedo. E esse é um momento explosivo, de catarse e satisfação, o momento em que tudo começa a fazer sentido. Claro que, em Bridgerton, a narrativa tem outros pontos-chave que queremos ver desenvolvidos, como é o caso da relação forçada (que acaba por se tornar genuína) entre Daphne e Simon. Ainda assim, a segunda temporada do period drama oferece-nos uma história em que já sabemos a identidade da rainha do gossip. Num estalar de dedos, o que era um conto de amor e mistério passa apenas a ser um romance dramático, deixa de ser preciso desvendar um enigma. E, embora a segunda temporada tenha sido a série em inglês mais vista na Netflix aquando do lançamento, não podemos deixar de lembrar que foram oito episódios lentos e, porque não dizê-lo, aborrecidos (vale o que vale, é a opinião de uma não-apreciadora de romances). No fundo, a questão é que a omnisciência que uma série dá ao espectador é uma ótima maneira de lhe afagar o ego, mas a coisa perde a graça se não houver algum detalhe que lhe seja omitido. Precisamos de um twist inesperado.
Certas produções já mostraram saber equilibrar com elegância e suspense a informação que nos é dada a conhecer e a que nos é vetada. Gossip Girl, uma espécie de versão cosmopolita, e moderna, de Bridgerton, pode ter dado muitas voltas até à sexta temporada, com enredos mais improváveis do que dramáticos. Mas temos de dar o braço a torcer, porque Gossip Girl é mestre na arte do timing: só no último episódio é descoberta a identidade da rainha (ou rei?) do gossip. Esta série, um dos símbolos dos anos 2000, faz mais do que obrigar-nos a tentar resolver este mistério impossível: entretem-nos, mantém-nos “colados” ao ecrã. Tal como Desperate Housewives ou Big Little Lies, que alimentam a nossa necessidade de espreitar para dentro das vidas pessoais dos outros. Falar em voyeurismo pode parecer excessivo. Porém, quando se trata deste tipo de programas, uma das coisas que mais prende o nosso interesse é precisamente o acesso privilegiado aos recantos mais íntimos da vida de outra pessoa. Numa espécie de realidade à la Truman Show, estamos lá para ver as personagens dormir, tomar duche ou fazer sexo. Nós, seres humanos, conseguimos ser mais curiosos do que gatos, e com séries não corremos o risco de perder alguma das nossas sete vidas. E desista já quem quiser negar ser uma nosy bitch, porque até a ficção já tratou de transpor esta nossa faceta para o ecrã. Somos um pouco como Jeff, de Rear Window: profundamente investidos na vida misteriosa de outrem, que vemos de perto através da janela. E o gossip é o passo seguinte do velhinho voyeurismo, porque nos concede entrada no universo de segredos exclusivos para nós, espectadores, e que em nada afetam o nosso dia a dia.
Há determinados ingredientes que fazem com que uma série sobre os boatos mais juicy valha a pena. Se Gossip Girl tivesse um rótulo ao estilo de informação nutricional, imagino que o conteúdo fosse algo do género: 29% de voyeurismo, 27% de drama, 20% de complexo de superioridade, 11% de entretenimento, 9% de mistério e, por fim, 4% de outfits de invejar. É uma receita que tem tudo para nos manter presos ao sofá durante dias, mergulhados nesta obra prima do início do século. Apesar de todos os componentes serem igualmente essenciais, há um especialmente importante no que toca a fazer-nos sentir algo — e esse algo é drama. Em cada episódio tem de existir pelo menos um desentendimento e altas doses de secretismo. Sejamos honestos, ninguém tem uma vida tão socialmente ativa que dela surjam, dia sim dia também, festas, mortes inesperadas, romances improváveis e a ocasional traição. Tudo coisas “excessivas” que adoraríamos experimentar. Porque, no fundo, vibramos com a montanha-russa emocional que é um triângulo amoroso ou a perda de alguém (não tão) próximo, sem de facto ter a maçada de ter de passar por isso. Neste sentido, as séries são o melhor meio-termo possível: enquanto nos mantemos seguros e protegidos da tragédia, queremos que as personagens passem por situações quase infernais para que possamos viver através delas. O coração bate mais rápido, como se estivéssemos ao lado dos protagonistas, a suportar tudo com eles. Com Gossip Girl, Bridgerton, Desperate Housewives, Pretty Little Liars e muitas outras, arranjamos uma forma de sentir o drama sem o viver. Afinal, não é para isso que serve a ficção? Quanto à história da Anita e do Filipe, o final foi muito pouco impressionante: o assunto morreu lentamente, até que as nossas sessões de gossip deram lugar a horas de almoço convencionais, vazias de assunto e propósito. Esta é a triste verdade: a vida real nunca será tão emocionante como o que vemos na televisão. Oh well, teremos sempre as séries.
Texto originalmente publicado na The Gossip Issue da Vogue Portugal, disponível aqui.
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