Artwork de Miguel Canhoto.
Agora que o regresso às rotinas está iminente, recordamos o que é o ritmo circadiano e porque é que é tão importante tê-lo em conta nesta rentrée.
Há quem adore ver o nascer do sol para começar o dia, e há quem termine o dia poucas horas antes do nascer do sol. A linha que separa os “early birds” dos “night owls” chama-se, na verdade, “ritmo circadiano” e influencia toda a nossa vida - desde a forma como dormimos até à forma como trabalhamos.
Na vida existem dois tipos de pessoas. As primeiras, são aquelas criaturas abençoadas por Deus ou uma qualquer outra divindade, que acordam às seis e meia da manhã, prontas para uma sessão de yoga revigorante, seguida de umas papas da aveia hiperestéticas que vão logo parar ao Instagram e que, por sua vez, antecedem a fotografia do #outfitoftheday, publicada daí a poucos minutos. Depois há os restantes. Os comuns mortais que dificilmente se conseguem arrastar da cama até à casa-de-banho, que acordam inchados e despenteados, que não têm capacidade de conseguir combinar um par de meias, quanto mais um look inteiro. São as pessoas que chegam ao emprego e parecem ter um sinal de “do not disturb” estampado no rosto, e que provavelmente não irão proferir uma palavra com mais de duas sílabas nos primeiros trinta minutos. São aqueles que quase rastejam em direção à máquina de café do escritório, na esperança de que aquele elixir divino possa ser uma espécie de boia salva-vidas que os resgate do mau humor matinal e da sonolência excessiva. Não será difícil pensar em alguém que seja assim ou que, eventualmente, se reveja neste cenário. Mas podemos assegurar que não se trata de uma questão de preguiça e muito menos de mau caráter. Estes comportamentos têm uma explicação relativamente simples e tudo se relaciona com o ritmo circadiano.
Primeiro que tudo, o que é o ciclo ou ritmo circadiano? De forma simplista, poderíamos dizer que é o ritmo natural do corpo, tem a duração de 24 horas e regula as suas principais atividades biológicas.” É, no fundo, uma espécie de relógio interno, e é de extrema importância para que tudo funcione corretamente no nosso organismo: influencia diretamente aspetos como o metabolismo, a saúde cardiovascular, o sistema imunológico, diversas funções cognitivas e hormonais e, claro, o sono - afetando diretamente a sua qualidade e quantidade, bem como a nossa capacidade de atenção durante o dia. Este último fator é de extrema importância para um organismo funcional, e a sua ligação ao ritmo circadiano é inerente.
Tal como explica a Doutora Leonor Dias, médica interna de formação específica em Neurologia, “todos temos um ritmo normal entre o sono e a vigília, e este varia de pessoa para pessoa, sendo regulado por fatores internos e externos. Existem estruturas no cérebro que regulam esta transição e se localizam no hipotálamo, nos núcleos supraquiasmáticos. Hormonas como a melatonina e o cortisol influenciam diretamente este ritmo. No que aos fatores externos diz respeito, podemos nomear o ambiente, o ritmo de trabalho, a idade e a exposição à luz solar”, desenvolve. O nosso ritmo de sono não é o mesmo durante toda a vida, e por isso é que os adolescentes têm tendência a deitarem-se mais tarde e a acordar também mais tarde, enquanto os adultos ou os idosos fazem valer a máxima “deitar cedo e cedo erguer.” A maioria das pessoas tem um ritmo intermédio, mas outras tendem a inclinar-se para um ou outro lado do espetro. Os famosos “night owls” possuem o que é chamado de “atraso de fase”, enquanto os “morning birds” têm “avanço de fase”, esclarece a Leonor Dias. Existe, além disso, uma série de outras perturbações menos comuns como ritmos que não têm a duração de 24 horas, como o jet lag e os trabalho por turnos, de que falaremos mais adiante.
É certo e sabido que não nos regemos todos pelo mesmo ritmo, mas num mundo que funciona maioritariamente em função de um horário “nine to five”, não haverá grande escolha que não segui-lo também. Assim, existem algumas medidas que podem ser tomadas para tentar adaptar ou preservar o ritmo circadiano, principalmente ligadas ao sono. “A primeira coisa será regular a exposição à luz solar. Pessoas que têm tendência a acordar mais tarde e adormecer mais tarde têm um tipo de melatonina mais tardia, e esta é uma hormona altamente sensível à luz. Por isso é que a exposição à luz dos telemóveis à noite também interfere com o sono e atrasa a produção da hormona. Se evitarmos a exposição à luz no período da noite e a aumentarmos de manhã, podemos lentamente conseguir alterar a hora de adormecer para mais cedo e a de acordar também”, sublinha Leonor Dias. A médica acrescenta ainda que, embora o resultado não seja imediato, ao longo do tempo a diferença será percetível.
Existem outras pistas comportamentais que podem ajudar a manter um ritmo equilibrado, tais como a manutenção de uma rotina de sono constante (idealmente incluindo fins de semana), a prática de exercício físico, e também o banho ou a ingestão de café. A cafeína funciona como um composto psicoativo, que bloqueia recetores no cérebro chamados “recetores de adenosina”, estimulando a atividade no sistema nervoso - e é por isso que tantas pessoas passam a vida a dizer “respondo-te depois de beber o meu café”, e é também por este motivo que aquele colega não vai responder aos nossos e-mails ou sequer iniciar uma conversa de circunstância antes de um milagroso shot de cafeína. Contudo, importa mencionar que o café pode ter efeitos indesejados, como o aumento da frequência cardíaca ou tremores. Na impossibilidade de cortar totalmente com este vício, deve-se tentar evitá-lo depois das três ou quatro da tarde, para não interferir com o sono, recomenda Leonor Dias.
Já ao que aos famosos “comprimidos para dormir” diz respeito, estes podem ser indicados, mas apenas após uma análise cuidada, explica a neurologista: “Só são recomendados por um curto período de tempo, e quando falamos de insónias crónicas a terapêutica recomendada será até cognitivo-comportamental, porque os fármacos têm muitos efeitos colaterais que podem também afetar a parte cognitiva. A maioria das insónias acaba por ter muito a ver com ansiedade ou personalidade, tem de existir sempre uma avaliação global.” Além disso, devemos certificar-nos de que, ao recorrer a fármacos, não estamos a “tapar” um problema subjacente: “Se tiver uma insónia e não conseguir dormir porque tem síndrome das pernas inquietas, então deve tratar as pernas inquietas em vez de tomar comprimidos.”
Ser um “morning bird” não significa necessariamente ser uma pessoa mais saudável. Existem estudos que indicam que ritmos mais tardios estão ligados à propensão de problemas cardiovasculares. Contudo, a explicação para este facto pode ser apenas comportamental, uma vez que estas pessoas podem ter uma vida social mais ativa. Apesar dos madrugadores não serem impreterivelmente pessoas mais saudáveis, acabam por sair favorecidos porque “a forma como está organizada a sociedade vai ‘beneficiar’ pessoas que acordam mais cedo.” Os horários desadequados ao ritmo circadiano podem afetar a performance, declara a especialista, afirmando que “quando um emprego não está adaptado ao nosso ritmo, pode causar problemas. E isto acontece com mais frequência em pessoas com ritmos de sono mais tardios. A nossa estrutura social está adaptada a ritmos antecipados ou intermédios, e ter um trabalho que comece às oito da manhã para alguém que tem tendência a acordar apenas às dez poderá fazer com que durma um número de horas insuficiente, o que conduzirá a insónias, sono não reparador ou sonolência diurna excessiva. O caso oposto é, no entanto, também possível, e mais significativo até no que diz respeito à vida social, já que uma pessoa que tenha por hábito deitar-se cedo poderá ficar excluída neste campo.”
Acreditar que todos os trabalhadores podem manter a produtividade máxima cumprindo o horário de trabalho convencional das 9 às 5 é um equívoco. Como vimos, diferentes ritmos circadianos implicam diferentes hábitos de trabalho. Há quem trabalhe melhor de manhã cedo e há quem não suporte estar acordado quando os pássaros ainda estão a cantarolar - e não há nada de errado com isso. Se há um estereótipo que precisamos de abandonar com urgência, é o de que trabalhadores que iniciam e terminam o seu dia mais cedo são, em consequência, mais produtivos.
Num mundo ideal, cada trabalhador teria um horário adaptado ao seu ritmo circadiano, de modo a maximizar a sua eficiência - mas isso seria, provavelmente, apenas um desejo utópico e o sonho de qualquer profissional de Recursos Humanos. Embora muitas empresas sejam agora mais flexíveis em relação aos horários (talvez graças aos ensinamentos da pandemia), será difícil ver esta mudança implementada. Enquanto colaboradores, queremos ter um desempenho excelente a todas as horas do dia, mas é crucial perceber que esta é uma expectativa irrealista e, como tal, organizar as nossas tarefas de acordo com o ritmo individual será a melhor estratégia a considerar.
Existe uma enorme quantidade de estudos feitos neste sentido e, tal como descrito em The Ideal Work Schedule, as Determined by Circadian Rhythms, de Christopher M. Barnes, as tarefas mais importantes devem ser realizadas quando nos encontramos no pico do estado de alerta, e as menos importantes devem ser guardadas para períodos de energia mais baixa, como as primeiras horas da manhã, depois de almoço (durante a famosa “moleza” depois da refeição). Passar a manhã a responder a e-mails e deixar as tarefas mais desafiantes para depois de almoço não é uma abordagem recomendada, já que se ocupa um dos períodos onde a atenção é maior com uma tarefa que será à partida mais automática e, por isso, adequada para momentos de menor energia. Além disso, esta pode ser uma boa altura para explorar partes mais criativas do trabalho e para ter ideias fora da caixa.
Também as sestas são uma boa estratégia para aproveitar ao máximo o ciclo natural deste ritmo e há diversos estudos que demonstram que estas podem aumentar a produtividade dos trabalhadores. Contudo, e conhecendo a realidade portuguesa, talvez deste lado da Península Ibérica a “siesta” não seja vista com bons olhos.
Em último lugar, e num dos cenários mais desafiantes, surge o trabalho por turnos. As estratégias para minimizar a perturbação do “relógio” do corpo e atenuar potenciais efeitos negativos seguem a mesma lógica descrita anteriormente, já que tudo passa por perceber o ritmo individual - desta vez adaptado ao horário em questão, por mais estranho que seja - e a exposição à luz ou a cafeína vão, de igual forma, ser ferramentas úteis. Contudo, manter sempre o mesmo turno seria o ideal, já que a variabilidade de horários se pode tornar verdadeiramente complicada, comprometendo não só a qualidade e quantidade de sono, como também aspetos cognitivos ou emocionais - e aí sim, o mau humor matinal já não será atenuado pelo café.
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