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A poesia da liberdade: Matilde Campilho

03 Apr 2018
By Irina Chitas

Estamos no mês da liberdade. A poesia é liberdade e a liberdade é poesia e nenhuma delas existiria sem palavras. Estas são as de Matilde Campilho.

Estamos no mês da liberdade. A poesia é liberdade e a liberdade é poesia e nenhuma delas existiria sem palavras. Estas são as de Matilde Campilho.

Matilde Campilho © Gonçalo F. Santos
Matilde Campilho © Gonçalo F. Santos

Deixámos o tempo correr. Sem estilhaçá-lo, sem apagar maneirismos, sem pretensão de algo mais do que o que é: uma conversa, acima de uma entrevista. Com muitos caracteres, com muito amor pelos caracteres. Falámos com Campilho, a poeta, a mulher, sobre tudo, sobre a palavra que é tudo.

O que é que querias ser quando fosses grande?

(risos) Por acaso há pouco tempo estava a pensar nessa pergunta. Fazem-nos sempre essa pergunta - o que é que queres ser quando fores grande? Qual é a tua comida favorita? E eu continuo sem respostas muito definidas para isso. Eu vivia no campo, vivia ao pé de Santarém, mas fora da cidade, e vivi lá até aos meus 16 anos. Então eu vivia muito o agora, não tinha muitos amigos, é meio cliché isto, mas andava ali a subir às árvores, era a irmã mais velha, os meus irmãos só vieram mais tarde, por isso andava com as pessoas dali, do campo, com os animais, com as árvores.

Agora, olhando para trás vejo isso, que vivia muito o tempo da natureza. A coisa de ir para a escola, voltar da escola… não era muito "quando eu for grande". Adorava ter uma resposta, tipo ser bombeiro ou astronauta. Mas não. Eu já gostava de escrever, sempre gostei de histórias, adorava banda desenhada, lembro-me que houve uma altura que os meus pais ficaram um bocado assustados, banda desenhada, porque eu lia tanta e, na altura, a banda desenhada era toda em português do Brasil, eles tinham medo que eu começasse a dar erros e tal. Eles não sabiam, eu também não sabia, mas era a coisa de escolaridade e tal, "depois vais tirar os c’s". Vivia mesmo no presente, e acho que tem a ver com isso, com a natureza. Vivia longe da cidade, da confusão, do que a cidade te pede constantemente, mesmo em criança; eu vejo as crianças aqui, que constantemente lhes é pedido - também esta geração é diferente - que façam isto, que façam aquilo, que agora acabem os trabalhos, então tu estás sempre naquela de fazer isto para chegar não sei onde. Ali há outro tempo, fora da cidade há outro tempo, então eu estava ali, saía da escola, ia brincar para a rua, chegava a casa toda suja, a minha mãe e o meu pai gostavam disso, o sujo era bom sinal, o meu pai dizia sempre "é sinal que brincou". É a coisa do tempo, tu tens tempo, és observada por ti própria, és observada pela natureza e aprendes a observar também, mais devagar, e essa coisa do erro é maravilhosa, ser permitido. É a mesma coisa que chegar sujo, chegas sujo porque tropeçaste constantemente, se calhar já não vais tropeçar novamente naquele buraco, ou sim, porque aquela poça é muita boa para brincar. É importante dar essa liberdade às crianças. Castrador é uma palavra um bocadinho forte.

O que é que queres ser quando fores grande? Não tens de decidir, é uma coisa que vem. Agora, eu acho admirável também as crianças que desde cedo sabem. Mas tu vês isso também com profissões mais concretas, "eu quero ser médico", ou "eu quero ser bombeiro", mesmo tendo virado cliché há crianças que querem ser bombeiros desde sempre e vão ser. É muito difícil uma criança dizer "eu quero ser escritor". Ou "eu quero ser pintor".

Sim, talvez pintor seja mais fácil. Mas escrever é aquela coisa que, felizmente, quase toda a gente faz. Mesmo que gostes de escrever desde pequenino, é sempre algo que sabes que tens de fazer, por isso chegares à conclusão que é aquilo que queres fazer como profissão, por ser uma coisa natural, demora.

E é uma coisa que é mais difícil dos tais adultos observarem. Porque a escrita é uma coisa muito privada, muito sossegada. A pintura não, se tu vês uma criança com desenhos à volta que está constantemente suja de tinta, se calhar pergunta-se "tu gostavas de ser pintor?". Mas quanto à escrita ninguém vê, porque é uma coisa que se faz sozinho, depois vem a adolescência e faz-se ainda mais sozinho. Também achas que é normal porque todos os teus amigos fazem.

E quando és criança, mais facilmente vais mostrar um desenho que fizeste do que uma coisa que escreveste. No máximo mostras que a tua letra é bonita e que escreves em cima das linhas.

Porque a escrita não é uma coisa palpável, não tens um objeto para mostrar. Queres ser médico, olha aqui eu a brincar com os meus bisturis. A escrita é uma coisa que não se agarra.

Continuas a ser uma pessoa de natureza, ou já te tornaste mais confortável com a cidade?

Confortável, sim. Eu nunca passei muito tempo na cidade. Agora moro em Lisboa há uns anos e gosto. Eu sempre gostei muito de Lisboa porque tinha quase a coisa do olho do turista. Não dos turistas em massa, mas a coisa de chegar e de ser tudo novo. E eu vinha a lugares específicos, era a rua do médico, quando eu vinha ao pediatra, era a rua de uma escola onde eu andei a dada altura… portanto foi muito tarde, quando vim para a universidade, que as coisas se começaram a ligar. Entretanto a minha família veio para cá, viver para o Estoril, que já era um bocadinho mais cidade e que eu conhecia porque a minha avó era dali, e nós vínhamos sempre passar as férias. Foi uma aproximação. Tudo teve um tempo assim meio lento. Vivíamos ali, eu apanhava o comboio e vinha para Lisboa e as coisas começaram a ligar-se um bocadinho mais, mas sempre numa coisa de entro e saio.

E depois fui viver para o Rio de Janeiro, tive muita sorte na época porque havia uma grande vontade de fazer diferente, de fazer mais seguro, estava a crescer economicamente, e foi uma cidade onde foi bom para eu aprender a viver com a cidade porque está enfiada no meio da natureza. Eu olho para um lado e vejo as montanhas, olho para o outro vejo o mar, quando eu não quero estar perto disto vou para o centro da cidade que é cidade mas, ao fundo há sempre um cheirinho de mato que aparece de repente no meio de rajadas dos carros.

E tens mar.

Eu tinha esta coisa de viver no Ribatejo, no meio do campo, porque tinha o Tejo, a gente tomava banho no Tejo… mas como a minha avó era de Cascais e nós íamos todos os verões eu tinha uma coisa com o mar. Aliás, a minha avó percebia isto melhor do que ninguém porque eu morei ali o primeiro ano da minha vida e ela dizia sempre que era uma coisa de proximidade do mar que me faltava. Faltava-me sempre água. E, de repente, havia o Rio de Janeiro. Tu já começas a sentir falta de poder ir ao cinema, ao teatro, e eu não tinha, e foi quando os meus pais também decidiram, "ok, vamos levar os miúdos para mais perto". E eu lembro-me de no Rio dizer isso uma vez, eu aqui posso dar um mergulho no mar, e sair e ir ao cinema. Posso estar no meio do mato e depois ir a uma exposição. É tudo perto. Depois voltei para cá, foi na altura em que estava a terminar o livro, e precisava de algum sossego. E Lisboa é uma cidade… eu vivi em Madrid e em Milão e as cidades tinham sempre uma coisa frenética que, por um lado, eu gostava do que elas me ofereciam, mas por outro toda aquela velocidade frenética deixava-me… Lisboa tem um tamanho muito humano. Depois de ter vivido em cidades em que era tudo muito veloz, achei que aqui podia parar. É uma cidade que deixei que se aproximasse de mim sem cair em cima de mim. E sempre com a coisa de ir ao mar, é tudo perto.

Acho que Lisboa te aceita. Tem um tamanho que te permite ser quem tu quiseres.

É isso, é uma escala muito humana. E não está assim tão longe da natureza, também. E é uma cidade muito segura. As pessoas têm atenção umas às outras. Em cidades como Nova Iorque ou Hong Kong… é outra coisa. Essa representação de cidade é outra. É velocidade, as pessoas têm coisas para fazer, têm tarefas para cumprir, têm de ter foco. Lisboa é uma cidade muito característica. Tu vês cidades na Europa que são muito parecidas, mas depois chegas a Lisboa que tem esta mistura… tu não vês um prédio que parece que te vai cair em cima, é a tal escala humana que permite que as pessoas olhem umas para as outras. Acho que o próprio lisboeta também se espanta com a cidade. Depois de repente os jacarandás começam a abrir e não há ninguém, mesmo quem viveu sempre aqui, que não diga "uau". Isso oferece aos outros uma simpatia, e a gente vê isso com os amigos que vêm de fora e ficam encantados com isto.

Também tem a ver com a simpatia, com a comida, como eles dizem, mas tudo é o mesmo. Tudo é muito humano. A comida é boa porquê? Está bem, a matéria prima é boa mas são as pessoas que fazem a comida verdadeira, das tascas, é humana. Tem aquela coisa da senhora que veio para aqui do norte cozinhar, e é toda uma família, e portanto tudo isso… eu não estou zangada com a cidade. A cidade mudou, muito, nos últimos cinco/seis anos, e todos vimos, e é conversa de mesa para todos nós, porque às vezes é cansativo, porque não estávamos habituados, porque foi talvez a última cidade da Europa que foi descoberta, mas eu acho que agora estamos só a alinhar agulhas. Ok, precisamos disto, e não nos podemos zangar com a cidade, porque ela continua a ser nossa. Permite-nos também viajar dentro dela. Lisboa tinha tudo isto mas era um bocadinho fechada. Para quem não lhe é permitido viajar, às tantas a cidade é pequenina. De repente, a cidade viaja até nós. Eu vinha a chegar aqui e ouvi falar três ou quatro línguas na rua. Estas grandes mudanças - e a nossa geração está a passar por muitas; todas passam, mas esta tem assim uma coisa de transição, o mundo era de uma maneira e agora é de outra - e esta coisa da cidade estar a ser invadida, em vez de nos zangarmos percebemos que nos permite trabalhar mais a atenção. Ok, então se calhar já não posso ir por ali, por onde é que eu vou? Vou por uma rua que nunca fui, vou almoçar à tasca que nunca fui, vou prestar atenção às pessoas que nunca prestei e se calhar no meio desta loucura, se eu não arranjar um bocadinho de foco, vou só ficar zangada, e isto vale para tudo. Se a coisa vier para cima de mim, o que é que eu faço? Zango-me e fico cada vez mais ranzinza? Ou vou focar a atenção? É uma coisa de gentileza, para nós e para os outros. 

Também nos uniu um bocadinho.

Mas não nos uniu contra. É mais um "que bom que eles gostam disto", é quase como dizerem que o nosso filho é bonito. Enche o coração, quem meus filhos beija, minha boca adoça.

Quando é que a escrita se tornou palpável para ti?

Não é uma epifania. É como apaixonares-te. Tu não olhas e, de repente, caí para o chão. Quando percebes, ok, isto já vem daqui, vem dali, é todo um desenho que se foi formando até me pôr neste lugar. Eu escrevo desde muito nova mas, lá está, todos escrevemos, vivemos num país bastante alfabetizado, por isso tem essa coisa de o que fazer da tua vocação quando a arma da tua vocação é uma coisa que tu sempre fizeste. Uma coisa que toda a gente faz. Então como é que tu percebes realmente? Foi uma questão de me apaixonar, mesmo. Fui fazendo cada vez mais, cada vez mais. A escrita está inevitavelmente à leitura. Para mim está ligada a duas coisas. Três. Atenção, espanto (que vêm muitas vezes de mão dada) e leitura, que está ligada a estas duas. Eu acabei a universidade e trabalhei em empresas, fiz aquele caminho dito normal, ou, pelo menos, que era esperado, mas guardava sempre um bocadinho para ler e para escrever. No começo escrevia mais do que lia, a leitura foi uma coisa que eu gostava, mas eu distraía-me muito, embora eu te tivesse falado da atenção, a atenção é uma coisa que para mim é sempre muito trabalhada, é um desafio constante. Eu sempre andei muito largada, é a coisa da natureza, andava por aí, subia às árvores, ia fazendo as coisas sem o "quero ser isto", e muitas vezes isso tira o foco, distrai. E eu fui-me apaixonando, escrevia tanto que comecei a ler mais, para começar a escrever mais coisas e encontrar novas maneiras de o fazer. E houve alguns livros, não vou agora aqui dizer, não vale a pena porque são tantos, que foram como "isto pode-se fazer?". 

Quando estamos apaixonados espantamo-nos sempre.

Porque é uma paixão que se transformou em amor, e o amor já sabemos que tem aquela coisa. A paixão pode derivar em amor ou não. O amor nem sempre tem paixão, muitas vezes tem até zanga. E eu zango-me muitas vezes com o meu trabalho e tento fazer o mesmo que tento fazer com o amor, que é… está difícil? Então vamos forçar. Que é uma coisa que a paixão não precisa, e muitas vezes nem permite, que é o esforço. A paixão já é o estado praticamente pleno, não precisas de te esforçar. O amor… o amor é o dia a dia. Quando isto começou, eu já escrevia. Foi no Brasil que a coisa começou a ter um ar mais sério, porque muitos dos meus amigos eram escritores também, portanto aquilo não era estranho, já não era aquela coisa que eu fazia tão sozinha, era uma coisa que, de repente, à minha volta muita gente fazia. E havia um escritor que eu gostava muito, o Carlito Azevedo, que foi uma espécie de um professor, da melhor maneira que um professor pode ser, porque é sem grandes regras. Passeávamos, caminhávamos na cidade, íamos juntos às bibliotecas, ele mostrava-me coisas para ler, e eu fui devagarinho… começou a tornar-se natural. Fazer traduções, ler autores que eu não conhecia, abriu-se todo um mundo novo ali. E foi ele que me sugeriu publicar um poema num jornal, o Globo. E eu aceitei, e foi engraçado porque tivemos uma reunião e eu dei-lhe assim um molho de poemas e ele leu, e no fim disse-lhe "Olha, escrevi este ontem. Mas este não tem nada a ver com isto, era só para tu leres e veres o que é que achas", e ele leu e disse "É isto". E isto é a prova de que a escrita é trabalho. Todos os outros eram rascunhos, eram os passos que eu estava a dar. Tudo se treina, todos os dias. Um médico todos os dias tem de estudar, o advogado todos os dias tem de estudar. A escrita não é, pelo menos para mim, uma coisa de inspiração, ponto. Sim, ela existe todos os dias, mas também se trabalha. A minha avó dizia sempre "fazer e desfazer é sempre trabalhar", e é. Posso passar uma semana, duas semanas, um mês para fazer uma coisa e chego ao fim e penso "ok, é isto". E passados alguns dias vou escrever outra coisa muito mais curta, muito mais resumida, e tinha tudo o que tinha ali mas em linhas mais simples. Esse é o trabalho. É ir fazendo e desfazendo, fazendo e desfazendo. Foi isso que aconteceu, aconteceu aquele poema no jornal, e depois aconteceu o livro, que era uma coisa que eu estava a fazer há muito tempo. O primeiro livro tem uma beleza que não volta a existir. Também só tenho um, por isso não sei, mas aquela eu sei que existe. Muitas vezes tu não sabes aquilo que estás a fazer, principalmente num livro de poesia. Tu estás a escrever, tu estás a trabalhar. E chega a uma altura, que não é um dia - lá está, não é uma epifania - que tu começas a perceber que ele está a ganhar uma forma. Mas tu não fazes para publicar, não fazes para ele ter uma capa. No meu caso fiz porque estava na hora de fechar. Estava na hora de contar aquela história, aquele tempo para poder seguir em frente. Depois, a partir daí, a coisa já estava.

A nossa língua é muito privilegiada em termos de literatura, em termos de poesia. Sentiste alguma pressão para encontrares a tua identidade? Esse processo de trabalho também teve a ver com encontrares a tua maneira de te expores e de escreveres o que querias escrever?

Não, não. O primeiro livro é o contrário do medo. É o contrário do medo de tudo. Não há medo de exposição, não há medo de falhar - pelo menos comigo foi assim -, não há medo do que os outros vão pensar porque é um mergulho numa piscina que tu não conheces, tu não sabes quem é que está lá em baixo, tu não sabes o que é um leitor, tu só sabes ser leitor. Tu não conheces isto, tu fazes porque a coisa vai… Provavelmente no segundo ou no terceiro eu já tenho consciência dessas coisas que estão à volta da literatura que eu não tinha até aqui. E isso é que é maravilhoso. Essa primeira aventura - e é mesmo uma aventura. Eu não me senti pressionada por nada porque aquilo não era uma bandeira que eu ia espetar em lado nenhum, eu fiz porque tinha de fazer. E então tinha uma liberdade imensa. Eu só prestava contas a mim mesma. Talvez aqueles últimos dias, do agora já está, já há gráficas, mas aí é outra coisa, já começas a entrar na fase do livro-objeto, e o livro-objeto é outra coisa. O fazer, o caminho? O caminho é sem medo.

Alguma vez sentiste peso no termo "poeta"?

Não. Percebi que os outros punham um bocadinho de peso nisso. Porque comigo foi uma coisa que foi acontecendo, quando dei por mim, estava ali. Eu não punha o nome, até porque a minha poesia não rima, a minha poesia não vem em quadras certinhas, e portanto sim, chegou a uma determinada altura em que eu percebi que sim, que aquilo era poesia, mas primeiro vem a palavra "poesia". A palavra "poeta" já é uma derivação que vem dali, já é uma coisa…

É um rótulo?

É um rótulo como médico é um rótulo. Mas não me fere nem um pouco, porque é bonita, é uma palavra muito bonita. Eu acho mais bonita "poeta" do que "poetisa" porque o poeta tem essa coisa… poeta, poeta. Tem essa coisa de ser uma voz universal. A poesia tem essa coisa, como a canção tem, de tocar num pontinho humano que tu levas a coisa para ti. Eu acho bonito a palavra "poeta" porque é uma coisa universal, e tu não estás a passar a coisa só para a mão do autor. A partir do momento em que o livro saiu, o livro já não é meu. Eu fiz, mas depois cada um lê o poema para si. É como eu quando vou no carro e toca uma canção na rádio, naquele momento aquela canção é minha, e não precisa de ser a letra, muitas vezes é o ritmo, muitas vezes o ritmo acompanha o que eu estou a fazer naquele momento. Por isso eu acho que a palavra permite essa liberdade. Deriva só de poesia. Poesia, poeta, e tu recebes para ti.

Tu sentes o desapego quando terminas o livro-objeto, ou assim que escreves um poema já o largaste?

O meu desapego não é total. Não é total porque a escrita faz-me muita companhia. Cada texto que eu escrevo, seja poesia ou não, inevitavelmente tem personagens, mesmo que sejam invisíveis, até porque tem ideias, e as ideias podem fazer muita companhia. Não se aprende tudo nos livros. Aprende-se quase tudo lá fora. Mas fazer livros é diferente. Fazer livros já tem, em si, uma coisa de aprendizagem. Eu aprendo todos os dias com as coisas que leio e às vezes até aprendo com as coisas que escrevo porque quando estou a escrever uma coisa é uma declinação de várias coisas que eu li e de várias coisas que eu observei, então é o alinhamento das ideias com o coração, sabes? O desapego não é total. Eu desde que comecei a fazer da escrita o centro da minha vida, eu nunca mais me senti sozinha. Eu não tenho medo nenhum da solidão, porque eu nunca não tenho nada para fazer. E portanto eu tenho um apego, mas é aquele apego que eu tento que seja são, que é: fui eu que fiz, foi comigo, veio comigo no caminho, a partir do momento em que fecho não vou saber exatamente o que é que estava a pensar, onde é que estava, o que é que tinha lido, mas vou saber que o fiz, mas agora vai.

A escrita é uma coisa de abertura. Não é uma coisa só para alguns. Até porque, lá está, a maioria das pessoas sabe ler. Não há, para mim, essa coisa da barreira. "Ah, eu não leio poemas" ou "ah, eu não leio textos científicos", eu leio, eu posso é não perceber. Mas se eu não perceber há várias maneiras de perceber. Perguntar, não necessariamente ao autor, pode ser a uma pessoa que seja mais da área. Eu tenho uma fascinação, por exemplo, por buracos negros, ou por wormholes, e se eu ler um texto na Scientifical American talvez eu não vá perceber à primeira, mas eu vou ler mais umas coisas e vou perguntar a pessoas que saibam. Porque tudo é abertura. Tudo é para todos. É mais maravilhoso ainda se for fora do círculo, que é quando as ideias e os pensamentos e as emoções se tocam. Nós somos todos muito diferentes, mas estamos todos aqui mais ou menos para o mesmo, que é estamos todos a tentar. Porque isto é fácil e é difícil. Portanto quantas mais coisas nos chegarem, especialmente fora do nosso espaço de conforto, melhor. Eu gosto que a poesia seja sempre uma coisa de abertura. A mim não me faz impressão ouvir os outros ler os meus poemas, por exemplo, posso pensar que eu leria diferente, mas olha que bonito, virou outro poema, até porque o poema tem essa coisa de todas as vezes que se lê, é outro. A pessoa que está a ler é outra, às vezes até pode ser a mesma, mas eu também não sou exatamente a mesma hoje num dia de chuva em Lisboa e amanhã num dia de sol na Colômbia, tudo é experiência, tudo é influência, e aquele poema, naquele minuto, assim como a canção, é uma coisa que se desdobra constantemente.

 Achas que as pessoas subestimam o peso das palavras?

Não. Eu acho que ninguém subestima o peso das palavras porque todos vivemos com elas, mesmo quem não fala. Quem não fala lê, quem não vê ouve, tu és confrontada com a palavra constantemente e as palavras põem coisas em movimento. A minha avó dizia sempre "Santo Agostinho virava a língua sete vezes antes de falar". A palavra, tanto quanto pode gerar coisas boas, pode ser perigosa também. Toda a gente já disse "falei sem pensar", e é evidente, a toda a hora, todo o dia, precisamos de usar as palavras, precisamos de as dizer, precisamos de as ler, precisamos de as escrever, muitas vezes elas são sem pensar porque estão automatizadas, como os gestos. Mas assim como os gestos temos de às vezes parar e ter a consciência de que todas as palavras e todos os gestos põem coisas em movimento. Não creio que alguém seja indiferente à palavra, mesmo que alguém pense que pode ser, não há como. Vivemos num mundo de palavras, de sons e de gestos. E acabam sempre por ser a mesma coisa: tu levas com elas e tu dás na mesma medida. Sim, velocidade; sim, viver a vida da forma automatizada que nos é pedida de vez em quando; mas parar para observar. Até porque muitas vezes uma palavra que eu diga sem pensar pode ferir; e, por outro lado, também pode sossegar. Eu fui muitas vezes sossegada pelas palavras de outros, de pessoas mais velhas, de crianças.

A poesia cura?

As emoções é que curam, talvez. A poesia gera emoções. A poesia ajuda a suportar. A poesia não é uma magia, embora tenha pequenas magias lá dentro. Eu só consigo responder a essa pergunta não como fazedora, mas como leitora. A poesia acompanha. O poema é curto, por muito longo que seja é sempre mais curto que um romance, portanto tu podes levar com um poema em qualquer lado, podes ir no comboio e leste um, podes ir no carro e olhas e vês, e, naquele momento, as tuas emoções estão abertas. O que cura é a medicina. Cura é uma coisa muito geral, cura do quê? De uma doença? De um coração partido? A poesia põe em movimento, põe uma cabeça em movimento, põe o coração em movimento, e isso sim, cura. Se eu estiver aqui quieta, passar o dia sentada, eu posso estar a fazer pela minha cabeça mas talvez não esteja a fazer pelo meu corpo. Fazer exercício cura, porque previne, porque abre, porque eu estou mais exercitada. A poesia exercita outros pontos do corpo, talvez. Não é a grande salvação. Mas eu acredito em pequenas salvações diárias. A música, o aparecimento de uma pintura à tua frente que tu não estavas à espera, a tal montanha que vês de repente, tudo isso são pequenas entradas de luz nos furinhos que temos todos.

A luz ajuda-te mais a escrever do que a sombra?

A poesia não é uma coisa só. A escrita não é uma coisa só. É como aquele passador da cozinha, que tu atiras para lá as coisas e só caem algumas. Recebe tudo. Eu não tenho essa coisa de só escrever quando estou triste, para mim é um trabalho diário, portanto eu escrevo sempre. Não é quando me apetece. É principalmente quando não me apetece. Por isso a escrita recebe tudo, mas tenta sempre chegar a um lugar de abertura, de deixar entrar, de - eu até tenho aqui uma nota, estava a pensar nisto há bocado - desfazer as barreiras da idolatria. De deixar de pôr esta coisa neste lugar. Tudo se mistura. Luz e sombra, somos todos feitos, mesmo quem diz que não, somos todos feitos das duas. É misturar tudo na mesma mesa, poder observar as coisas uma a uma, às vezes agrupá-las de uma maneira, às vezes agrupá-las de outra, mas deixar que tudo permaneça nem que seja suspenso durante um bocadinho. Para mim, há uma importância na escrita de trabalho de memória. Não só a memória do que eu vi, do que eu senti, mas de memória do mundo, de deixar gravado, para as pessoas que estão aqui ao meu lado lerem, mas para outros, quando já nenhum de nós estiver aqui, ficarem a ler. E é engraçado porque a escrita tem tanto de memória como de gerar memórias novas. E isso é um dos desafios, uma das coisas que eu gosto na escrita.

A escrita tem todos os tempos.

Está tudo ali. Toda a ficção - e a poesia pode inscrever-se na ficção - vem de algum ponto real. E o leitor às vezes nem se chega a aperceber desse ponto real, porque ele não precisa de ser transmitido, mas ele existe porque eu sou um ser vivo e atento ao mundo, existe porque foi uma coisa que eu disse ou uma coisa que eu observei. Esse pontinho real, mesmo que seja invisível, fica lá, permanece na escrita, e isso é a fixação da memória. A geração da memória tem a ver com o tal espanto, tem a ver com o tal desdobramento constante que vem de escritor-leitor-escritor-leitor, e isso desdobra-se no infinito.

É muito fácil, hoje, ver o que há de mais escuro, até porque somos bombardeados com isso. Achas que quem cria tem alguma responsabilidade de relembrar que existe luz, que nem tudo é sombra?

Depende, porque todos criamos diferente. Há quem vá mais pela via de destrinçar a escuridão. Às vezes a escuridão é mais fácil de olhar, não sei se de entender, porque às vezes não dá para entender, mas pelo menos de olhar. Há autores que trabalham mais a luz, há autores que trabalham mais a escuridão. Nós vivemos num mundo no mínimo diferente do que estávamos preparados para receber. Nós somos a geração de transição - e quando digo nós, talvez a geração dos nossos pais também - porque crescemos sem internet, sem telefone sempre à mão, mas por outro lado as coisas já estavam todas aqui. Agora é uma questão de modificar um pouco os gestos. Estamos mesmo numa era que acerta agulhas. Eu não tenho esta coisa deste desvio para o horror que muitas vezes é o que as notícias, as redes sociais, nos querem fazer ver. O horror sempre esteve aí. É inevitável que quando chegamos à idade adulta ele chegasse também. Agora parece que levamos com ele em barda porque há mais informação, é certo. Mas cabe-nos a nós separar um bocadinho a informação, não ficar sempre com a cara enfiada nela e tentar, cada um, fazer o melhor possível. Porque isto começa tudo nos gestos pequenos. E fazer frente ao medo. Vivemos uma era que é um bocadinho assustadora, todas as eras de transição o são, e todas têm um cheirinho de fim do mundo, pode ser o fim de um mundo, mas os mundos constantemente começaram e acabaram. E portanto, qual era a pergunta?

Se quem cria tem alguma responsabilidade em mostrar que a esperança ainda não morreu.

Sem cair num lirismo excessivo, sim. Frequentando um mundo real, tendo consciência - porque muitas vezes o problema de um lirismo excessivo é que perde a consciência de que realmente existem sarilhos. O Wittgenstein, que era um filósofo, matemático, que se dedicava a destrinçar a linguagem, há uma coisa muito bonita que ele dizia aos alunos que era - um homem com todo aquele conhecimento - be kind. Ele podia dar qualquer conselho, conselhos sobre lógica, sobre matemática, sobre arquitetura, dizia be kind. Sempre que possível, sejam bons com os outros. Eu só posso ter este discurso porque eu sei que tive muita sorte na vida, porque tive desde que nasci muito amor nas costas. Tive avós e pais e irmãos que, mal ou bem, me amaram muito. Realmente, as coisas que te fazem quando és criança vão-se desdobrando. E eu carrego comigo uma herança muito forte de amor, e amor empático, que diz que somos todos diferentes. Uma família é um exemplo muito forte disso, porque nascem não sei quantos seres absolutamente diferentes que têm de frequentar as mesmas casas, comer à mesma mesa, e eu aprendi com a minha família a compaixão, a pores-te no lugar do outro. E é isso que se deve tentar fazer todos os dias com qualquer trabalho. Be kind.

Isso também te ajuda a contar histórias.

Sim, claro. Quando tu tens as costas quentes, e as costas quentes é mesmo pelo amor e pela empatia, é mais fácil olhar quando tens os olhos mais limpos. Obviamente que tenho sarilhos, e vou ter muitos mais, mas isto já ninguém me tira. Mesmo que nunca mais ninguém me ame no mundo, isto já ninguém me tira. Portanto compete-nos desdobrar isto, e quem puder fazer isso com o seu trabalho - no meu caso trabalho mistura-se com vocação, com dia a dia, todos os gestos que eu faço constantemente estou a trabalhar, a escrever, a ligar ideias. Isto não é para salvar ninguém, é para gerar coisas novas, mas forradas de… kind é uma palavra difícil de traduzir para português, mas de uma gentileza.

Se calhar o segredo do mundo é mesmo simples.

O mundo tem segredos infinitos. E os humanos mais ainda, por isso é que isto é tudo tão difícil. Essa metáfora da família, depois vais para o mundo e é isso multiplicado constantemente. E este discurso é muito difícil, porque eu estou aqui a ter este discurso e depois isto vai para o papel e parece o tal lirismo. Mas as palavras geram coisas. Eu acredito nisto. O que não quer dizer que eu não escreva um texto absolutamente negro, ou absolutamente revoltado, ou que eu não me revolte inclusivamente no dia a dia, até porque a revolta muitas vezes pode levar a esta gentileza, não é o estar quieto e parado. Estar quieto e parado, sim, também é importante, pare, escute e olhe, vira a língua sete vezes antes de falar. Mas há coisas que precisam de mudar, e nós estamos aqui ainda, geração ativa. E tem-se visto isto a acontecer. Pequenos pontinhos no mundo, ao mesmo tempo que acontecem estas tais coisas negras que a gente conhece, do outro lado vê-se muita gente a tentar fazer diferente.

Há, aliás, vários movimentos que o que pedem precisamente é a tal bondade e igualdade. E não têm de falar com sete pedras na mão.

É assertividade. A flor até pode estar lá, na mão, nos dentes. Não é murcho. É assertivo. É de peito feito. Esta é a minha verdade, podes dizer-me a tua, mas, se faz favor, não me pises. E acima de tudo não pises os que não se podem defender. E têm-se visto pessoas de peito feito. Depois há o problema da violência, que pode vir tanto de um lado como do outro. Voltamos à potência das palavras: todos estes movimentos são muito de palavras, dos cartazes, de gente a gritar, e às vezes é preciso ter muito cuidado com o que se grita e com o que se escreve nos cartazes. Incitar à assertividade, sim, ao fazer, mas não à violência.

As redes sociais tiveram um papel muito grande em dar voz a toda a gente, mas o problema é que as vozes que mais se ouvem são as que falam mais alto. Não são, necessariamente, as mais assertivas, nem as mais abrangentes, nem as mais bondosas. São as que gritam, e que podem estar a promover a violência, ou até a promover a causa pela qual lutam mas, ao gritar, perdem a razão.

Tu aprendes muito mais com exemplos do que com gritos. A minha avó nunca nos gritou e nem por isso foi mole, bastava dizer devagar, com voz grave, e nós fazíamos, quiséssemos ou não quiséssemos. Basta seguir o exemplo. Não é o grito que se persegue, é o exemplo. 

Quando tu escreves, o mundo à tua volta fica mais nítido ou desaparece?

Fica mais nítido. A escrita não abafa nada. Para o bem e para o mal. A escrita traz. Não esconde. Traz muito mais nitidez. Para mim. Eu não me escondo do mundo para escrever. Eu estou nele. Não é uma coisa de alienação, é uma coisa integrada no espaço e no tempo que eu vivo. Estava a ver muitas coisas antes de vir para aqui e aqui num poema do Adam Zagajewski, e achei engraçado só porque o poema fala do verão, das folhas, do vento, e de repente há um verso que diz “Rembrandt jovem, ainda sem medo, observa a partir de um postal”, e depois continua, “O mar açoita, vem aí a guerra”. Esta imagem de está tudo a acontecer, e há um postal, um objeto, e dentro do postal está o Rembrandt, que tu nem sequer sabes se é o próprio ou é uma pintura dele, que está a observar tudo isto. Isto é a perfeita integração das coisas dentro das coisas. É o contrário de se desligar. A escrita tem muitas vezes observação sobre observação sobre observação. É como a fotografia, é uma caixa onde a luz entra e depois gera outra coisa com profundidade, sabes? Não é uma coisa de alienação, é o contrário. É de geração.

Achas que é preciso viver muito para escrever pouco?

Escrita e vida para mim já são muito a mesma coisa. Viver muito, viver acima de tudo, viver acima de tudo. Para mim faz muito parte da vida, eu não estou a desistir da vida para escrever, pelo contrário. Eu estou a viver um bocadinho mais, eu estou a esticar um bocadinho o tempo. E quando eu digo esticar o tempo não é uma metáfora, em vez de o meu dia acabar às dez da noite e ir para a cama, às dez da noite vou-me sentar a escrever e fico a escrever até às três da manhã, então aumentei um bocadinho o meu dia. Mas não deixei de o viver. Para mim não há que deixar de viver para escrever, nem há que deixar de escrever para viver. Está tudo interligado.

Tu falas muito em postais. Achas que ainda se escrevem cartas de amor?

Claro que sim, muito mais do que antes. Se nós vivemos no tempo de SMS’s, Whatsapp’s, Facebook’s, Gmail’s, os mais novos de Insta não sei quê, é um tempo em que se escreve muito mais. Não necessariamente poesia, nem mais ensaios, mas o ato de escrever acontece muito mais. E pequenas declarações de amor também acontecem muito mais, talvez não necessariamente a carta de amor que a gente está habituado a encontrar e a ser um tesouro, esse tesouro é muito raro já, o objeto palpável que tu podes agarrar e levar dobradinho em quatro no bolso. Um dos poemas mais bonitos que eu conheço [This is just to say, William Carlos Williams] é só um suposto recado de um homem a dizer que comeu todas as ameixas que estavam no frigorífico, espero que não te importes, estavam tão boas. É um recadinho. Aquilo é uma carta de amor. O recadinho que ele deixa de manhã. Acho que sim, escrevem-se pequenos apontamentos amorosos constantemente. A única coisa que a gente agora tem mais dificuldade em lidar é que eles não se guardam. Mas eu acho que ainda há aí uns que fazem isso. Porque uma carta de amor não diz necessariamente "eu amo-te". Se disser é bónus. Mas uma carta de amor pode ser só um recado que diz "Saí. Trago laranjas para o pequeno-almoço de amanhã". O "amo-te" é sempre um bónus. 

Leia, também, as palavras de Matilde na Vogue Portugal de abril, já nas bancas.

Irina Chitas By Irina Chitas

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