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“Há algo bastante ousado nele" – Uma conversa entre Jean Paul Gaultier e o seu novo designer convidado, Ludovic de Saint Sernin

24 Sep 2024
By Amy Verner

Jean Paul Gaultier e Ludovic de Saint Sernin. Fotografia: Adam Peter Johnson/ Cortesia de Jean Paul Gaultier.

Ludovic de Saint Sernin será o oitavo designer convidado de Jean Paul Gaultier.

É também o mais novo. Na altura em que nasceu, em 1990, o enfant terrible original da Moda, então com 38 anos, tinha acabado de apresentar a sua exuberante coleção Adam and Eve (Adão e Eva), Rastas Aujourd'hui (Rastas hoje), que incluía manequins masculinos e femininos a desfilar em casal, de forma irrequieta; nomes como Helena Christensen e Rossy de Palma em fatos coloridos, espartilhos florais e conjuntos de discoteca. Como é habitual, o desfile teve humor, performance e insinuações a um nível que raramente vemos hoje em dia.

De Saint Sernin, que lançou a sua marca em 2017 e assumiu as rédeas de Ann Demeulemeester durante uma temporada no ano passado, desenha a partir de uma visão provocadora e as suas ideias de género e sexualidade resultam em roupas que são por vezes minimalistas, por vezes glamorosas, muitas vezes com o corpo descoberto. Não é preciso um esforço de imaginação para o ver a explorar uma variedade de criações icónicas da Gaultier.

Seguindo os passos metafóricos de Nicolas Di Felice (Julien Dossena e Simone Rocha, entre outros recentes ex-alunos), de Saint Sernin será o primeiro designer convidado a apresentar looks masculinos. Esta será também a sua estreia na Alta-Costura e, apesar do desfile de primavera ser apenas em janeiro, a necessidade de uma preparação intensa ajuda a explicar a razão de não marcar presença nas passerelles esta semana.

Em exclusivo à Vogue, diretamente da sede da Jean Paul Gaultier, os designers abraçaram a sua divisão geracional e demonstraram um nível de conforto que sugere a semelhança de opiniões entre ambos – quer olhem para o passado ou para o futuro.

Jean Paul, como é que descobriu o trabalho de Ludovic?

Só conhecia o seu trabalho, não o conhecia pessoalmente. Estou sempre interessado no que os novos designers estão a criar. Lembro-me de ter ficado muito surpreendido quando vi uma das suas primeiras coleções, porque havia algo bastante ousado nas suas peças de homem. Adoro que ele faça este tipo de provocação, que ao mesmo tempo é interessante, agradável e bonita. Foi nessa altura que disse: “vai ser bom”.

E Ludovic, qual é a sensação de saber que estava no radar de Monsieur Gaultier?

É incrível. Acho que a primeira vez que nos conhecemos pessoalmente foi nos bastidores de um concerto da Dua Lipa. Éramos duas pessoas a desfrutar de um concerto fantástico. Eu disse-lhe o quanto o admirava e criou-se uma ligação fantástica de imediato. Acho que a minha coisa favorita na Moda é quando crescemos a fazer referência e a ser inspirados por um ícone e, um dia, conhecemo-lo – e depois acabamos a trabalhar juntos! É uma sensação incrível saber que estamos a fazer isto e que tenho a sua benção.

Quando é que começaram a falar sobre o projeto?

Combinámos um belo almoço antes do verão e tivemos uma excelente conversa. E isso deu-me confiança para saber que sou capaz de fazer isto – e é uma casa incrível para fazer parte.

Objetivamente, como é que o processo se desenrola? Ludovic, já começou?

Sim, já comecei. Fiquei tão entusiasmado quando confirmámos que ia mesmo acontecer que comecei logo a fazer esboços. Adoro desenhar e faço-o com calma. Gosto de entrar no espírito. Fiz muita pesquisa. E depois, um dia, estava em casa a desenhar e pensei: “Já sei como quero fazer isto”. E essa é uma das melhores sensações, porque depois sentimos arrepios do género: “Oh, isto vai ganhar vida, esta é a história que quero contar”. Entreguei os esboços ao atelier em julho e agora estamos a ver os primeiros 12 looks.

Posso perguntar se foi por isso que decidiram não apresentar um desfile nesta temporada?

LdSS: Acho que queria dar o meu melhor. E acho que pode estar relacionado mas foi o que acabou por acontecer. Há na mesma uma coleção [Ludovic de Saint Sernin] e estou muito entusiasmado porque é muito nova para mim; estou a experimentar coisas novas.

Jean Paul Gaultier, outono 2021 Alta-Costura por Chitose Abe.
Fotografia: Alessandro Lucioni / Gorunway.com

Jean Paul, agora que há oito designers, diria que este conceito funciona?

Sinceramente, sim. Funciona muito bem. Quando me fui embora, disse que queria que a casa continuasse sem mim. Mas pegar num designer – bem, qual deles? Esta era uma ideia que eu tinha há muito tempo. Lembro-me de quando Christian Lacroix deixou Jean Patou [em 1987]. E pensei que devia haver um designer para fazer cada coleção. Fui lá porque tinha sido assistente em 1972 e propus esta ideia: Talvez ter Vivienne Westwood, Romeo Gigli – as pessoas do momento. E sabe como responderam, tão franceses: “Demasiado caro”. De qualquer forma, depois disso, mantive essa ideia porque vemos diferentes interpretações, uma evolução.

Mas penso que isso só pode acontecer numa casa que tenha códigos tão reconhecíveis. É preciso ter um historial bastante sólido para que os designers possam realmente entrar e já compreender a marca, mas depois ter também espaço suficiente para brincar com ela ao longo do tempo.

JPG: Exatamente. Podia ser pretensioso ter esta ideia; mas é como um sonho ter alguém com personalidade própria e que comunica algo com aquilo que cria. O Ludovic vai fazer o que já faz atualmente, mas para a Gaultier.

Se pudesse ter tido uma experiência destas, com que casa gostaria de ter trabalhado?

JPG: Na altura, teria adorado fazer com a Saint Laurent. Agora é demasiado tarde. Mas também com a Chanel. Tratava-se de ter algo que já diz alguma coisa. Hoje em dia, é interessante ver dois universos diferentes juntarem-se.

Ludovic, quais são as suas primeiras recordações de Jean Paul Gaultier?

Acho que as minhas primeiras memórias são os anúncios de perfumes. Lembro-me de crescer e pensar: “Uau, é alguém que sabe contar uma história”. É Moda, mas torna-se parte da cultura. Uma das coisas que mais admiro no Jean Paul é o facto de ser um designer, mas alguém que também se tornou parte da cultura, da pop culture, e participou em projetos que acreditava. Usou a sua voz para defender causas, para se divertir e para libertar as pessoas. Acho que isso é algo que só posso fazer hoje porque ele o fez antes de mim. E descobrir que podemos ser nós próprios na Moda, que podemos ter a nossa própria voz e singularidade e orgulharmo-nos disso. Ele construiu uma comunidade à sua volta muito antes do Instagram e das redes sociais.

É uma excelente observação.

LdSS: E é muito interessante poder construir esta ligação, porque ele conseguiu ser o rosto da sua marca e fazer com que as pessoas comunicassem diretamente com ele. Saímos e as pessoas aproximam-se dele como se o conhecessem. Penso que é uma forma muito generosa de abordar o papel de um designer de Moda. E eu tento fazer a mesma coisa; tento imitar esse sentimento. Por isso, acho que temos muito em comum.

Jean Paul Gaultier, primavera 2022 Alta-Costura por Glenn Martens.
Fotografia: Arnaud Lajeunie / Cortesia de Jean Paul Gaultier

Jean Paul, cada designer revela-lhe algo de novo?

Sim, sem dúvida. A Sacai é japonesa, por isso é claro que está faz algo diferente. Pegou em algumas das minhas coisas e fê-las de uma forma descontraída. Glenn Martens fez uma bela coleção, mas era mais rigorosa. Eu tendo a ir mais por esse caminho e, por vezes, não é legível, digamos assim, porque tem uma orientação demasiado diferente. Admiro o que ele fez. Cada designer trouxe a sua própria essência, tal como Ludovic.

Já partilhou estes esboços?

LdSS: Não...

JPG: E é melhor assim. Quero ser surpreendido. Se estivesse a fazer isto para o Sr. Saint Laurent e ele estivesse lá, teria ficado de rastos, do género: “Meu Deus, não posso fazer isto, talvez ele não goste”, em vez de pensar na minha visão sobre o seu estilo. Quero que ele seja livre e que acredite nele próprio.

Ludovic, agora também está a tentar a sua sorte na Alta-Costura.

Adoro trabalhar com o atelier. Adoro fazer peças à mão. Adoro todo o trabalho artesanal. Tenho esta paixão desde que estive na Balmain com o Olivier [Rousteing]. E a passerelle vai ser muito emocionante. Já consigo visualizá-la e até fantasio com ela. Mas para além disso, é também a experiência de saber que se está a apresentar estas peças a clientes incríveis. Estas peças vão viver e inspirar pessoas e vão fazer parte da história da casa. E criar peças personalizadas para celebridades é também entusiasmante. Já tenho uma em mente. É esse o objetivo que estou a manifestar para depois do desfile.

Quando penso na vossa sobreposição e na razão pela qual Jean Paul terá gravitado em torno do trabalho de Ludovic, penso na importância do corpo e dos laços entrançados. Qual é a atração para ambos em relação a algo que parece subversivo, um pouco fetichista…?

Eu sou mais velho do que ele, por isso, os motivos são diferentes. Antes de mais, quando vi pela primeira vez o espartilho da minha avó, não sabia o que era. A cor de carne com o cetim, o laço. Ela contou-me a história de tomar um pouco de vinagre para fazer uma contração do estômago, para conseguir apertar o espartilho e ficar com uma cintura mais pequena, por isso sempre tive essa memória presente. E lembro-me de uma espécie de musical em Nova Iorque que era suposto passar-se nos anos 20 ou 30 e estavam todas vestidas de salmão, porque era lingerie. Eu observei raparigas jovens a olhar para aquilo e a adorar e pensei: “Talvez seja bom fazer um vestido a partir de um sutiã ou de um espartilho”. Temos de ser o reflexo do que está a acontecer e do que algumas pessoas querem. Eu não queria que elas sofressem. Mas também foi este momento depois do vestuário unissexo, e eu queria fazer a forma da mulher e exibi-la novamente. Foi o momento com Beatrice Dalle e também com Madonna, que queria usar a peça.

Ludovic, ocorreu-me que poderia estar a manifestar a Madonna para isto...

LdSS: Se calhar estou. Reparou que agora sou loiro? Acho que o que é interessante também é que o Jean Paul ficou muito famoso devido ao espartilho e eu fiquei muito famoso graças às minhas cuecas de ilhós. Muito rapidamente, encontrámos uma peça que era imediatamente reconhecível, a partir da qual ambos podíamos construir um mundo inteiro. E surgiu de uma paixão genuína de tentar exprimir a Moda de uma forma nova e diferente. Inicialmente, estudei vestuário feminino e pensei que me iria dedicar exclusivamente a isso. Depois, compreender que a Moda também podia ser uma história pessoal foi uma grande revelação. Foi então que decidi que a minha primeira coleção ia ser de homens a usar roupa feminina, mas de forma a que não parecessem travestis. Era algo realmente credível, e isso inspirou tanto homens como mulheres a usarem as mesmas peças. Isso segue a perspetiva de Jean Paul, sem dúvida.

JPG: A saia para homem. Tentei dar-lhes um ar masculino, mas é algo que é mais ou menos feminino.

LdSS: Penso que, nessa altura, também se tratava de uma questão de género. Cresci de uma forma um pouco conservadora no 16º arrondissement, fui muito protegido. E pensava: “Estas roupas tipicamente masculinas não me assentam nem a mim nem à minha silhueta, quero mostrar o meu corpo”. Acho que o que aconteceu foi que todas as roupas que vi quando era adolescente estavam a ser usadas por mulheres incríveis que eu admirava. Mas, de repente, ao vesti-las num homem, pensei: “Uau, nunca pensei que pudesse resultar”.

Ludovic, acha que isto também vai definir as suas colecções no futuro?

É interessante porque, obviamente, comecei a trabalhar na coleção atual antes de saber que ia fazer Alta-Costura em janeiro. Mas agora estou a trabalhar nas duas ao mesmo tempo. Por isso, estou a analisar muita da história da Gaultier. E pergunto-me se as pessoas irão ver as semelhanças. Quando se entra numa casa diferente, aprende-se uma forma diferente de olhar para as roupas, de construir as peças, de pensar em padrões que não são exclusivos de Jean Paul. E isso vai definitivamente influenciar a forma como trabalho no futuro, quer eu saiba ou não.

Ann Demeulemeester, outono 2023 ready-to-wear.
Fotografa: Filippo Fior / Gorunway.com

Entre a sua passagem pela Ann Demeulemeester e agora pela Jean Paul Gaultier, consegue fazer a ponte entre duas estéticas completamente diferentes.

Sim. Quer dizer, acho que tenho o meu próprio ponto de vista. E acho que cresci a adorar a Moda e conheço bem estas casas. Se conseguir aceder ao arquivo, experimentar as roupas, ver como se sentem, aprendo a estética rapidamente e entro nela com uma paixão muito genuína. E quero sempre prestar-lhe homenagem. Quer se trate de Ann ou de Jean Paul, a forma como vejo as coisas é: “O que fariam eles hoje se tivessem a minha idade e no panorama atual?”.

Pode dar-nos uma pista?

Não, não, não! Há algo que não acredito que ainda não tenha sido referenciado. Para mim, como francês, é algo muito importante e as pessoas ainda não perceberam. E estou muito ansioso por isso.

Ficou mesmo loiro apenas para este momento?

LdSS: Queria estar loiro quando filmássemos juntos. Comecei há dois meses e estou loiro há uma ou duas semanas.

JPG: Como se sente loiro?

LdSS: Estou a adorar. Tenho estado a trabalhar muito, por isso ainda não me diverti. Mas espero divertir-me.

Esta entrevista foi condensada e editada por razões de extensão e clareza.

Traduzido do original, disponível aqui.

Amy Verner By Amy Verner

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