Artigo originalmente publicado em julho de 2018.
Se a idade importasse, o estilo tinha prazo de validade. E se há coisa que nos ensinam desde pequenos é que o estilo é eterno.
Se a idade importasse, o estilo tinha prazo de validade. E se há coisa que nos ensinam desde pequenos é que o estilo é eterno. É como o arco-íris, o fenómeno meteorológico que reflete, refrata e dispersa a luz na água tornou-se o símbolo da diversidade e do amor sem barreiras. Iris Apfel também. Fotografia de Luís Monteiro. Realização de Kim Howells.
Afável, amável, gentil. Nenhum destes adjetivos nem nada que se pareça com eles pode ser usado para descrever Iris Apfel. Mas também não é de admirar: há 97 anos a lidar com humanos, não há quem não desenvolva uma espécie de intolerância a tudo o que é de circunstância, a tudo o que é leviano, a tudo o que é acessório (menos os acessórios em si). A questão aqui é que Apfel sempre foi assim, a equilibrista entre o rude e o sincero, a maquinista de uma locomotiva que até pode parar em todas as estações e apeadeiros para conhecer as culturas locais, mas que não espera por ninguém quando é hora de partir. E, por isso, várias carruagens costumam ficar para trás – o mindset da sociedade de hoje em dia é um deles. Para Iris sofremos todos de facilitismo, de uma preguiça crónica porque “a maior parte das pessoas não faz ideia de quem é e nem se parece importar. Com as redes sociais e a Internet as pessoas carregam em botões à procura de todas as respostas e vivem através das outras pessoas só se interessando pelo que todos os outros fazem”. Apfel fala numa voz veemente com umas quantas notas de enfado e cansaço, como se estivesse a repetir o óbvio.
Não faz cerimónias e não tem problemas de dizer que não gosta das perguntas – o que acontece literalmente em todas as entrevistas que lhe fazem – tal como não tem zero problemas de se deixar levar nas respostas, de se entusiasmar com as mensagens que sente que tem de repetir, uma e outra vez, porque a sociedade contemporânea insiste em não querer ouvir. O que Iris não sabe, nem no fim do seu primeiro século de vida, é que o que é evidente para si chega como um raio de clarividência para nós. Ainda somos crianças no mundo que conhece com as mãos, bebés sedentos de conhecimento e ávidos de poder perguntar a quem, para nós, se eleva ligeiramente acima dos comuns mortais, o que raio andamos aqui a fazer.
Iris Apfel também já foi uma criança como nós. “As pessoas fascinavam-me. Coisas bonitas sempre me fascinaram”, diz, e podemos imaginar que sim, tentar ver dentro de nós a beleza que irradiaria de Nova Iorque nos anos 30, a elegância com que todos se vestiam, a postura com que todos caminhavam pelas ruas de betão, de costas direitas e laca na cabeça. A mãe de Apfel nunca tinha um cabelo fora do sítio, cultivava a perfeição a todas as horas, e venerava “o altar dos acessórios”, fazia coisas com colares que nunca ninguém tinha pensado fazer e talvez tenha sido por isso que Iris começou a colecionar bijuteria aos 11 anos. A Iris antes de o mundo a conhecer como “a” Iris, foi revisora de texto no Women’s Wear Daily, mas depressa começou a estagiar com um designer de interiores que remodelava apartamentos nova-iorquinos para os tornar apelativos durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi nesta profissão que desbravou uma carreira ao lado do marido, Carl Apfel. Trabalharam com nove primeiras-damas americanas na Casa Branca – começando durante a presidência de Truman –, fundaram a sua empresa, Old World Weavers, especializada em restauro, viajaram por todo o mundo à procura das melhores relíquias, dos melhores achados, das melhores peças e levaram sempre com eles o melhor amor. Tinham clientes (quase) tão especiais como eles, que apreciavam tanto os objetos estrambólicos que encontravam como a garra que tinham para os encontrar. Iris e Carl estavam tantas vezes fora que decidiram não ter filhos, até porque Iris não acreditava em amas, e traçaram o seu caminho de mãos dadas numa era em que a sociedade olhava muito de lado para esta vida solitária. “Eu não o fiz para quebrar as regras ou para ser diferente”, diz Iris, quando lhe falamos da independência que lhe está cravada nas veias. “Eu sempre pensei que eu sou eu, e tenho de fazer o que me agrada a mim. Só porque toda a gente está a fazê-lo não significa que eu tenha de o fazer. Nunca fiz nada para ofender alguém ou ser rebelde. Não acredito nisso.”
Mas acreditava em Carl, isso sim. Mr. Apfel morreu aos 100 anos, em 2015, mas até aí mantinham uma paixão tão carinhosa que era de fazer inveja a qualquer casal de adolescentes, a bem dizer, a qualquer ser humano. “My beautiful child”, dizia ele quando Iris entrava na sala.” “How are you pussycat?” foi sempre a resposta dela, enquanto lhe passava a mão pelo rosto. O amor, diz-nos Iris, “dá uma sensação de estabilidade, de ser desejada, de ser apreciada, e acho que precisas disso se queres ter uma vida feliz”. E foi assim que Apfel construiu o seu nome na elite dos designers de interiores nova-iorquinos, desbravando caminho com os colares que tilintam quando anda e com a sua personalidade que tilinta ainda mais ensurdecedoramente.
Mas “a” Iris nasceu quando Harold Koda, curador no Costume Institute do Metropolitan Museum of Art, a convidou a ser a protagonista de uma exposição. Rara Avis: Selections from the Iris Apfel Collection, que a própria montou, incendiou Nova Iorque e a lenda viva que é Apfel fixou-se no imaginário americano. A ave rara, de cabelo branco e roupa de todas as cores, que papagueia as suas verdades – que se tornam universais – a quem a ouvir era a nova menina querida da cultura pop. A menina querida de 83 anos.
Depois Iris Apfel desenhou loafers, foi rosto da Kate Spade (ao lado de Karlie Kloss) e de Alexis Bittar (ao lado de Tavi Gevinson), foi capa da Dazed, foi musa do mundo. Ah, e ainda há o genial documentário de Albert Maysles (o mesmo que filmou Grey Gardens), Iris, que transporta Apfel além da estética e para uma nova dimensão emocional.
Porque é que, de um momento para o outro, não existia ninguém que não soubesse o seu nome? Por causa da sua idade? Nem pensar. É por dizer coisas como: “É terrivelmente importante [manter uma curiosidade e encantamento], não infantil, mas como uma criança, é um atributo essencial para uma personalidade feliz. E olhar para a vida da forma certa. Acho que um sentido de deslumbramento é absolutamente imperativo, e tristemente vejo que a maior parte das coisas na vida não o tem. Hoje em dia todos querem saber o porquê, todos querem uma razão. O mistério, o glamour perderam‐se, tudo está completamente estabelecido. Todos querem parecer, ser e pensar como todos os outros. Bo-ring!” “Aborrecido” é, de certeza, a palavra que diz com mais tristeza na voz.
Atrás de si ouvem‐se as sirenes da cidade que nunca dorme nem deixa dormir. Iris veste o seu roupão “velho e grande”, que usa quando não tem de sair ou sorrir ou ser fotografada ou fazer fretes. Não que Apfel seja, alguma vez, de fazer fretes. Quando os faz, também faz questão que todos saibam que o está a fazer. E isso é delicioso. Isto não quer dizer que Mrs. Apfel pare de fazer o que quer que seja, muito pelo contrário. “Gostaria de fazer muitas coisas, muito diferentes. Gosto que as pessoas me abordem com coisas sobre as quais nunca pensei, e depois faço‐as.” Faz, faz mesmo, tanto que anda sempre a correr de um lado para o outro, a dizer que sim quando devia estar a dizer que não. Mas aceita porque lhe dá prazer. Porque lhe dá pica. Porque a desafia. Aceita porque o seu corpo pode ter 97 anos mas a alma ainda agora vai para os 17. “Só me interessa realmente o agora”, diz com toda a franqueza e sem margens para erro. “Vivo no agora. O passado passou e está acabado e ficar presa nele é ridículo porque não podes fazer nada para mudá-lo. E quanto ao futuro, nós nem sequer sabemos se teremos futuro. Por isso viver no agora, e aproveitar tudo o que podes do teu dia, é o que é importante.”.
Quase que não precisamos de um corpo para a identificar. Óculos do tamanho de bolas de futebol, colares tão grandes e em tanta quantidade que fazem lembrar uma rave de serpentes, pulseiras enormes até aos cotovelos, padrões, padrões, padrões. Sim, podemos não precisar de um corpo mas precisamos da personalidade que mesmo quando é abrupta é brilhante, mesmo quando é áspera é genial. Chama‐se a si própria uma “estrela geriátrica”, esta mulher que “na tonalidade certa, não há nenhuma cor que eu não use” e que responde com um misto de tristeza e irritação à pergunta se a Moda tem ultrapassado a barreira entre o conforto e o desleixo com um “Oh meu Deus, esse é o eufemismo do ano. As pessoas não se importam! Não interessa se estás belamente vestido, se não estiveres bem cuidado vais sempre parecer uma confusão”.
A relação de Iris Apfel com os dias de hoje não é, obviamente, pacífica. Não só acha que “a fantasia é terrivelmente importante, não sei como conseguem viver sem ela. Fantasia, mistério, glamour, tudo isto são assuntos mortos hoje em dia e é por isso que acho que tudo se tornou cinzento e aborrecido”. Mas também a Moda a falha. “As roupas são apresentadas da forma que é mais apelativa para elas”, explica. “Primeiro, os designers não desenham com as mulheres mais velhas em mente – e nem era preciso fazerem‐no, porque há peças muito bonitas que as mulheres mais velhas poderiam usar – porque tu fazes vestidos de 20 mil dólares em silhuetas que só funcionam em corpos de 16 anos e depois são apresentados em modelos de 13 anos. É a insanidade total. Acho que toda a indústria cavou a própria sepultura.” Como é que isto se muda? “Usem senso comum, por amor de Deus. Apostem em cores e silhuetas que funcionem em mulheres mais velhas. Façam vestidos com mangas. Há milhares de coisas que as mulheres mais velhas podem vestir. A idade não tem nada a ver com a forma como te vestes, à exceção de coisas inteligentes, como não usar minissaias, decotes profundos ou não ter um cabelo longo e esvoaçante.”
Felizmente, nada disto lhe dá insónias, porque apesar de pensarmos facilmente nela como um ícone de estilo, Iris tem mais que fazer do que pensar demasiado em roupa – é óbvio que isso é mais fácil para quem tem um guarda‐roupa de arquivo como o seu, tão, tão bom que não é raro doar peças a museus. Talvez seja por isso que as pessoas têm a ideia errada da sua relação com a Moda? “Tenho a certeza que sim. Acham que é só nisso que penso. Acho que a Moda é maravilhosa, serve um propósito, mas não acho que devas dedicar a tua vida a pensar em roupa e vestir‐te e ir às compras. Eu faço muitas coisas interessantes que fazem valer o meu tempo.”.
Nós também. Como tentar decorar tudo o que Iris Apfel diz, por exemplo. Cada vez que nos atira uma frase, queremos repeti‐la como mantra até se fixar no nosso inconsciente de forma a que se imprima no nosso ADN e se torne parte de nós. Isto é o que vamos começar a dizer baixinho, em loop, todas as manhãs: “Vestires‐te muito bem implica muitos princípios artísticos. E não estou a falar de te vestires de maneira formal. Tens de saber realmente o que estás a fazer para escolheres uma ou duas linhas e desenhá‐las – tens de conhecer todas as outras linhas possíveis para escolheres apenas aquelas. É a mesma coisa quando te vestes. Não é só o que fazes – é o que não fazes. E isto chega com a prática, com o teres uma certa sensibilidade”. Ah, sim, e esta – que diz como quem encolhe os ombros – é a que vamos tatuar no interior do antebraço para ler em momentos de aperto: “A perfeição não existe. O meu signo é Virgem, por isso tento sempre atingir a perfeição, tentamos chegar sempre o mais perto possível, mas quando as coisas são demasiado perfeitas tornam‐se aborrecidas. Tornam‐se rígidas. Tem de existir uma dose de descontração e humor na perfeição, caso contrário é um desastre.”
Humor, honestidade e joias, joias, joias: é isso que Iris tem em demasia. Generosidade, também, pelo simples facto de aceder a partilhar o seu mundo e a sua voz e os seus olhos aumentados pelos óculos telescópicos com que vê uma vida, para ela, cada vez mais cinzenta. Mas a nossa tem mais cor enquanto Apfel estiver por cá. A última frase que diz no documentário sobre a sua vida é: “Não sou uma pessoa bonita. Mas não gosto do bonito. Por isso resultou. [Pausa] A maior parte do mundo não está comigo, mas não quero saber.” Nós estamos, Iris. Nós estamos.
Iris Apfel é um exemplo - dos melhores, é um facto - que o sentido de deslumbramento não se perde com os anos, mas com a vontade. Só que não é a única. Descubra mais mulheres incríveis (e inspiradoras) aqui.
* Artigo originalmente publicado na edição de julho de 2018 da Vogue Portugal.