Inspiring Women  

La Divina

23 Oct 2018
By Ana Murcho

Passamos grande parte da nossa vida cheios de certezas sobre pessoas que nunca conhecemos, até ao dia em que nos sentamos a falar com elas. Mariza, por exemplo, é muito mais solar do que as músicas que canta. Muito mais extrovertida. Muito mais alegre.

Passamos grande parte da nossa vida cheios de certezas sobre pessoas que nunca conhecemos, até ao dia em que nos sentamos a falar com elas. Mariza, por exemplo, é muito mais solar do que as músicas que canta. Muito mais extrovertida. Muito mais alegre. Ri-se tanto ou mais que o seu interlocutor. E tem tanto para contar (para partilhar?) que, por momentos, ignoramos o nervoso miudinho de estar na presença de uma verdadeira diva.

O termómetro incendeia as ruas de Lisboa, indiferente às exigências do guião. Há um vestido Oscar de la Renta azul-noite para fotografar numa garagem húmida, uma mulher-deusa para retratar longe do seu habitat natural. A artista improvisa o palco. Não tem a defesa do microfone nem a simpatia do público. É ao mesmo tempo mais desafiante e mais intimista. A cada click esvai-se uma parte, ínfima, da alma. Mariza segue as indicações da equipa da Vogue e, em pouco tempo, consegue-se a imagem perfeita, essa de um glamour semiausente, descosido. Não há-de faltar muito para estarmos sentadas à sombra, numa conversa que foge ao fado e procura as outras coisas belas da vida. [“Trata-me por tu, por favor.”] Sabemos que o vídeo de Quem Me Dera, do álbum homónimo, lançado em maio, está prestes a chegar aos seis milhões de visualizações. O sucesso é um perseguidor incansável desta voz que começou na Mouraria e se lançou para o mundo. Mas o que queremos aqui é a outra Mariza – a que fala, sem ensaios, sobre as suas paixões. A que nos conta histórias de almofada – o significado da sua tatuagem, a aventura para encontrar o vestido dourado que usa no novo single. Nós agradecemos a generosidade. Isto (tudo isto) também é fado. 

Ainda te lembras do que usaste em palco no teu primeiro espetáculo? Do primeiro espetáculo não me lembro, mas recordo-me bem de uma data, que coincidiu com a morte da nossa grande diva - essa é que é a diva, a divina, Amália Rodrigues – de um tributo que lhe fizeram na televisão. Eu não queria ir, porque nunca conheci a senhora pessoalmente, tenho um respeito gigante pela sua memória e pelo seu legado, mas insistiram tanto que acabei por ir e ainda bem que fui, porque caso contrário não estaríamos aqui hoje. Foi a partir daí que tudo deu uma volta. Que tudo começou. Eu ia cantar um tema que era O Senhor Vinho e lembro-me de que eu e o João escolhemos uma saia roxa que tinha umas parras em ouro velho, com um espartilho preto, e quando entrei toda a gente fez ‘uau.’ E eu pensei: ‘Meu Deus, isto vai correr muito mal.’ E depois só me lembro de querer sair dali o mais depressa possível. Toda a gente diz que correu muito bem, mas não me lembro de nada. Ia caindo nas escadas. Lembro-me da roupa. [Risos] 

"Eu decido o que quero usar, o que me faz sentir confortável. Porque se não for assim, se alguém te disser “vais usar isto”, não funciona."

Que criadores vestem melhor esse teu lado mais teatral? Tive a sorte de ter um amigo que faz vestidos, e que está cada vez mais bem posicionado no mercado, que é o João Rolo. E depois existem outros designers que eu uso, caso do Elie Saab, que adoro, mas depois também tem muito a ver com as minhas viagens. Por exemplo, vou a Londres e apaixono-me por um vestido McQueen e compro aquele vestido talvez só para um concerto específico, e depois guardo-o. O bom de ter um amigo como o João Rolo é que os vestidos podem voltar a ser reinventados, podemos voltar a reutilizá-los, de outras formas. E ele pode fazê-lo porque está mais perto de mim. Quando eu compro um Elie Saab, um McQueen, ou um Dior, já é mais difícil. Quando se faz uma tournée com um vestido ele fica muito marcado, não se pode usá-lo outra vez, tem de se deixar passar um tempo – é como uma roupa que seja muito vistosa. E com o João eu posso voltar a usar o vestido porque ele já tem outra cambiante, já está mais curto de um lado e mais comprido do outro, ou já não tem mangas, ou já tem o decote mais profundo. Este mundo todo fascina-me, [o facto de] poder ser um bocado camaleónica, no sentido em que no palco é possível reinventar-me. Mas também te digo que tem a ver com o ADN da pessoa. Quantas vezes já foste ver artistas, olhas para a roupa e dizes ‘A pessoa não está confortável, aquilo não tem a ver com ela.’? Isto tudo que acontece em cima do palco, o meu cabelo louro e curto, a utilização de vestidos de Alta-Costura, tem a ver com aquilo que eu gosto, com o meu ADN. Se eu for cantar, por exemplo, ao Walt Disney Concert Hall, eu que já conheço a sala penso ‘Naquela sala fica bem um vestido assim e assim’, digo isso ao João, e os dois conseguimos idealizar, concretizar, e levo aquele vestido para aquela sala. 

És sempre tu que tomas essa decisão. Sou sempre eu. Tem sido sempre assim. Eu decido o que quero usar, o que me faz sentir confortável. Porque se não for assim, e lá está a história do ADN, se alguém te disser “vais usar isto”, não funciona. Eu já sei o que funciona em mim, conheço o meu corpo. Eu não sigo a moda de ninguém. Eu sou assim e assumo-me como sou. 

O que significa, para ti, a palavra glamour? Alta-Costura. Porque acho que é uma das formas de arte de que me aproximo mais, apesar de gostar imenso de pintura, de escultura… Acho que Alta-Costura é uma das formas de arte mais interessantes. E é uma forma de arte que a mulher pode usar. Usa-se na rua, eu uso em palco, são coisas feitas minuciosamente, à mão, são únicas. E isso para mim é glamour. Eu acho que o palco necessita de muito glamour. É uma caixa mágica onde eu posso dar asas à minha imaginação e ao meu sentido estético, e por isso para mim o glamour passa muito pela Alta-Costura. 

Costumas acompanhar os desfiles, estás a par das coleções? Sim. Eu gosto muito de Moda. Obviamente que no dia a dia talvez seja mais prática, uns jeans, uns ténis, umas sandálias, uma T-shirt, mas se tiver um jantar adoro arranjar-me… como qualquer mulher. Sou feminina, gosto de me vestir bem, gosto de um vestido bonito, de uns sapatos de salto alto, coisas muito específicas. E depois no palco eu tenho um sentido estético diferente. O palco permite-me viajar, e aí já uso coisas mais exageradas, vestidos grandes, Alta-Costura, nesta fase gosto muito de transparências, acho que fica lindo, com as luzes. 

A roupa sempre com um papel importante na forma como te expressas. Sim. Eu já ia para o Senhor Vinho [casa de fados onde cantava] assim. O João tinha um guarda-roupa gigante e eu chegava lá e dizia “Hoje vou toda vestida de roxo”, e tirava uma saia, um vestido, uns sapatos, tudo roxo. E quando entrava no Senhor Vinho com este cabelo, assim vestida, toda a gente pensava: “Quem é esta maluca que vem para aqui cantar?” Ainda no outro dia encontrei o presidente de um clube de futebol que me disse: “A primeira vez que a vi entrar no Senhor Vinho você estava toda vestida de amarelo. Pensei que você era uma ave rara, que não devia cantar nada e usava a roupa para chamar a atenção. Mas depois você começou a cantar e mudei completamente de opinião.” E eu ri-me. Nas casas de fados normalmente toda a gente se veste de preto, e perguntavam-me muitas vezes “Mas vais cantar dessa cor? Vais cantar de vermelho?” e eu dizia “Mas eu canto com a voz, ou canto com as cores? Canto com a voz, portanto posso vestir o que eu quiser”. Quando eu tinha bandas, já tinha um vestuário certo para quando ia cantar. Tinha umas calças pretas muito largas de cintura subida com uma T-shirt preta com um grande decote e tinha um casaco tipo Stevie Nicks, cheio de rachas, também preto, e usava uns ténis cor de laranja fluorescentes. E dançava que me fartava, e o casaco dava para fazer imensas coisas com os braços, e era aquela roupa que eu usava sempre que ia cantar com as bandas. Acho que sempre tive uma noção estética do palco. 

No vídeo de Quem Me Dera usas um vestido dourado impactante. Foi feito no corpo! O realizador tinha-me pedido um vestido dourado, tinha-me visto numa sessão fotográfica com um vestido da Dolce & Gabbana. E eu disse-lhes que o vestido não era meu, tinha sido emprestado. A ideia deles era fazer tudo dentro de água e eu disse que não ia comprar um vestido daquele valor para ser posto dentro de água e ficar todo estragado. Então andei à procura de opções muito mais baratas para fazer o vídeo com aquele tom de dourado. Em conversa com Paula Carmo, a minha maquilhadora, ela diz-me que aquele vestido da Charlize Theron para o perfume da Dior tinha sido feito no corpo dela. Andei nas casas de tecidos, encontrei um vestido dourado, entrei na água e filmámos. Tanto que não se vê muito a parte de trás do vestido porque tem uma data de coisas a agarrar para aquilo não cair! [Risos]

O cabelo também é uma das tuas imagens de marca. Quando é que decidiste cortá-lo? Em 1999 tinha o cabelo por aqui [aponta para a cintura], aos caracóis. E sou meio ruiva, agora não, com tanta tinta o cabelo escureceu. Lembro-me que dava imenso trabalho, e o meu sonho era cortar o cabelo, e a minha mãe odeia, para ela as meninas não têm cabelo curto, e eu toda a vida usei cabelo comprido. Assim que tive oportunidade pedi ao Eduardo Beauté para me cortar o cabelo, “assim curtinho à rapaz”, e ele dizia “Não, só te corto o cabelo à rapaz sem me deixares platinar”. E platinar era uma coisa que não entrava na minha cabeça. Até que acabei por ceder. Ele fez uma espécie de extreme makeover, durante quatro horas não vi nada, e quando ele me mostrou eu amei. Amei. Coisa que ninguém gostou na altura.

E a tua mãe? A minha mãe abriu a porta de casa, voltou a fechar a porta, e disse: “Tu és muito maluca. Vá, entra lá!”

E nunca mais voltaste atrás. Não. Nem quero. Vai fazer 20 anos. Mas manutenção… Ao início era mais certinha, agora devo dizer-te que começo a ficar um bocado preguiçosa para pintar, porque também já acho piada quando tudo se mistura.

"As pessoas podem-se aproximar de mim, mas eu tenho o meu escudo, os meus picos. Se me conhecerem melhor, eu sou uma flor, deixo cheirar o meu perfume, deixo que me percebam melhor."

Estás menos diva [risos]. Esta palavra faz-te sentido? Tem dois significados. Um positivo e um negativo. Diva quer dizer “la divina”. Mas quando falas em diva as pessoas pensam que é alguém cheio de rococós, mau humor, que faz imensas exigências, que é insuportável… Há uma ideia de diva, que me foi passada, não sei porquê, que é aquela mulher que é muito autoritária e altiva, que quase ninguém se consegue chegar ao pé dela, tudo muito inacessível. Mas depois há um lado de diva do glamour, que é maravilhoso. Depois olhas para essas figuras dos anos 30, e para figuras como a Aretha Franklin, que morreu agora, e acredito que essas pessoas tenham tido as suas exigências, mas depois têm aquele lado diva que é o que te faz sonhar e que tu olhas e dizes “Eu gostava de ser assim, eu queria ser assim. Não me importava nada de viver cinco minutos assim, ou cantar assim, ou vestir assim.” Esse é o lado diva. Mas há muitas pessoas, e eu tenho muitas pessoas, principalmente nas minhas viagens, que não são conhecidas mas que pelo porte, pela forma como entram numa sala, têm um porte de diva. Não precisas de ser conhecida para ser diva.

Mencionaste a Aretha Franklin. Que outras mulheres, igualmente fascinantes, te inspiram? Não sei se já reparaste, mas todas as mulheres artistas têm vidas dificílimas. Não são vidas fabulosas, são vidas cheias de atritos, de complicações. A Nina Simone é uma mulher que me inspira bastante, por toda a sua luta, pela sua vida, pela forma como canta, é fascinante. As nuances, os tons da voz, ouves um disco da Nina Simone e dizes “Isto é um homem que está a cantar?!” e de repente vem-te uma voz supersuave e não pode ser a mesma pessoa. A Aretha Franklin, que eu amava, e que cresci a tentar atingir aquelas notas que ela atingia. A Whitney Houston, que teve uma vida atribuladíssima. Depois tens cantoras como a Maria Callas, com uma história inacreditável. No canto dela vinha toda sua a vida. Toda a dor. Tenho muitas mulheres que me inspiram. E depois tenho uma que me inspira muitíssimo, que é a minha mãe. Essa inspira-me todos os dias, pela sua forma de estar, por ter sido uma mulher tão batalhadora, ela é uma das minhas divas também. 

Tens uma tatuagem ao longo do braço. Existe aí um duplo sentido, estético e filosófico? É um ramo de roseira. Há flores que têm rosas fechadas e depois começam a abrir e voltam a fechar novamente. Muitas vezes as pessoas olham para nós, principalmente os artistas, e nunca sabes porque é que se aproximam, se é por interesse, se querem realmente conhecer-te. Não sei se já alguma vez tocaste num ramo de roseira, quando estão em botão ainda, elas picam. E são fortes, são difíceis de partir. O significado é esse. As pessoas podem-se aproximar de mim, mas eu tenho o meu escudo, os meus picos. Se me conhecerem melhor, eu sou uma flor, deixo cheirar o meu perfume, deixo que me percebam melhor. Mas o primeiro impacto é fechado, és tu aí desse lado e eu aqui. Porque eu nunca sei. E isso cria-me muitos medos e muitos receios. E anseios.

Existe algum objeto, alguma peça, que uses todos os dias? Uma joia, um relógio? Vejo essa pulseirinha azul e preta… Foi o meu filho que fez. Ele nasceu de 25 semanas, a motricidade dele tem de ser muito trabalhada, e eu sei a dificuldade que ele teve para fazer isto. E chegou tão feliz, os olhos dele brilhavam tanto e ele disse “Mamã, usa a minha pulseira!” E ele fica orgulhosíssimo quando vê fotografias minhas com a pulseira. É a coisa mais valiosa que tenho.

 

*Artigo originalmente publicado na edição de setembro 2018 da Vogue Portugal.

Ana Murcho By Ana Murcho

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