Na literatura, como na vida, o sexo vai da sensualidade mais refinada à pornografia mais explícita. A vivência está na cabeça de quem lê.
Na literatura, como na vida, o sexo vai da sensualidade mais refinada à pornografia mais explícita. A vivência está na cabeça de quem lê.
Fotografia: Nina Sinitskaya © Getty Images
“Sexually explicit content” — “Conteúdo sexualmente explícito” — é uma etiqueta que aparece frequentemente em vídeos, espetáculos e, evidentemente, livros. Não contém um juízo de valor; apenas avisa que há cenas de sexo minuciosamente descritas; quem não se sente bem com elas que não leia. Mas o sexo, explícito ou não, não é a intenção daquilo a que chamamos “Literatura”, ficção bem escrita e prazerosa de se ler, que proporciona uma experiência interior inédita ao leitor. A matéria prima literária por excelência não é o sexo, mas sim a sensualidade. Ou seja, não o que se descreve, mas a forma como é descrito.
O erotismo, essa sensação tão difícil de definir como fácil de ver, nem sequer é igual para toda a gente, para todas as épocas literárias e para todas as culturas do mundo. O sexo explícito nas estátuas dos 25 templos que restam em Khajuraho, na Índia, eram uma experiência mística para os seus construtores. Já as cenas cruas narradas em Opus Pistorum pelo norte-americano Henry Miller, em 1940, foram escritas para ser pornográficas, por encomenda. Miller, um escritor filosófico, lutou toda a vida para que os seus livros fossem reconhecidos como Arte, mas tinha um estilo de ficção realista (a realidade contada como ficção) que não era aceite pelos padrões da época. Consideravam-no pornográfico, isto é, ordinário, quando ele procurava o sublime. Sexus e a trilogia Sexus/Nexus/Plexus, escrita entre 1942-1959, só em 1964 foi considerada publicável, depois de uma disputa que chegou ao Supremo Tribunal de Justiça. (Opus Pistorum, encomenda particular que Miller escreveu a um dólar por página para sobreviver, só seria impressa em 1983, depois da sua morte.)
No outro extremo da literatura — a reles, sem mérito estético —, As Cinquenta Sombras de Grey, de 2011, por Erika Leonard, foi um sucesso mundial; em 2015 já ia em 125 milhões de exemplares e 51 traduções. O conteúdo é definido como “cenas eróticas explícitas de práticas sexuais”. Mas, factualmente, não foi isso que Miller descreveu em Sexus? Quais as diferenças? De intenção, certamente; Miller procura a verdade da condição humana, o sentir mais profundo do ser, que inclui, necessariamente, sexo. Leonard apela ao instinto sexual como um fim. E de forma, com certeza; Miller escreve maravilhosamente, com um vocabulário precioso, enquanto Leonard usa todos os lugares-comuns disponíveis no léxico, numa narrativa sem poesia. Quanto aos famigerados Os 120 Dias de Sodoma, escrito pelo Marquês de Sade no martírio da prisão, em 1785, não é nem sexo nem sensualidade: é tortura do foro patológico, narrada escatologicamente.
Contudo, estas comparações não respondem à questão do que é erotismo e o que é sexo. Mesmo deixando de lado os pleonasmos, “sexo erótico” e “eroticismo sexual”, já de si reveladores da confusão, é evidente que há uma fina divisória entre o que é literatura erótica e literatura sexual — divisória essa que se desloca tanto pela sensibilidade de quem lê como pela moralidade da época.
Na literatura, como na Arte em geral, sempre se avançou aos solavancos, com retrocessos e recomeços. Os Contos de Canterbury, escritos por Geoffrey Chaucer entre 1386 e 1400, e que contêm cenas explícitas, foi um grande sucesso em Inglaterra e é considerado um marco da literatura britânica. No entanto, no período puritano do século XIX, era considerado impróprio e só em 1960 é que Olívio Caeiro os traduziu parcialmente para português.
Mesmo deixando de lado os pleonasmos, “sexo erótico” e “eroticismo sexual”, já de si reveladores da confusão, é evidente que há uma fina divisória entre o que é literatura erótica e literatura sexual.
Do mesmo modo, o Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio entre 1348 e 1353, e considerado o primeiro romance “realista” (em oposição ao “espiritual” que se praticava na época) está cheio de histórias picarescas, na altura consideradas divertidas e atrevidas, o que não impediu o seu sucesso e grande divulgação (dentro dos padrões da iliteracia geral do século XVI). Mas foi colocado no Index dos livros proibidos pela Igreja Católica. Foi preciso esperar até 1956 para ler a primeira tradução brasileira, de Raul de Polillo. (Em Portugal há uma tradução de Urbano Tavares Rodrigues, de 2006).
O facto de Portugal ser um país púdico e católico não impediu, até talvez tenha provocado, incursões dos nossos melhores escritores pelo erotismo. Prova disso é a Antologia da Poesia Erótica e Satírica Portuguesa, compilada por Natália Correia em 1966, e que inclui autores como os impolutos Camões, Antero de Quental e Fernando Pessoa, além do grande mestre, Bocage. (Natália foi processada pelo Estado Novo e o livro proibido, num caso célebre, que envolveu outros ícones literários, como Luís Pacheco, Mário Cesariny de Vasconcelos, José Carlos Ary dos Santos e Ernesto de Melo e Castro, além do editor Fernando Ribeiro de Melo.) Isto quanto a poesia, porque em prosa há os exemplos exemplares de Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, de outros naturalistas e, depois, dos neorrealistas.
No Brasil, Júlio Ribeiro escreveu em 1888 um livro sugestivamente intitulado A Carne, que causou um inevitável escândalo, mas não foi proibido. E é d’A Carne que escolhemos este exemplo de erotismo literário, que nem sequer envolve sexo: “Sentou-se, cruzou as pernas, desatou os cordões dos borzeguins Clark, tirou as meias, afagou a corrente, demoradamente, os pezinhos os breves em que se estampara tecido fino do fio de Escócia. Ergueu-se, saltou das anáguas, retorceu-se um pouco, deixou cair a camisa. A cambraia achatou-se em dobras moles, envolvendo-lhe os pés.” Isto, em 1888! O erotismo não tem época, o que muda é o modo como ele é visto — aceite ou repudiado. Há, com certeza, mudanças na forma — no vocabulário, no andamento dos procedimentos. O que é percebido como erotismo hoje era atirado para o sexual há 100 anos. O que hoje é considerado sexual era inenarrável há dois séculos.
Nada disto se refere à ficção amorosa. O amor e o sexo, embora interligados muitas vezes, produzem ficção que pode ser muito diferente. As famosas Cartas Portuguesas de soror Mariana Alcoforado, escritas no século XVII, são um romance de amor. O sexo, implícito, não é sequer mencionado. É como naqueles filmes românticos do antigamente, em que o casal se começava a beijar e a câmara deslizava para o fogo na lareira. Já as Novas Cartas Portuguesas escritas a três mãos por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, não são nem românticas nem sexuais, mas antes um manifesto feminista em que o sexo é usado como provocação. Publicadas em 1972, foram consideradas “de conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública” pelas autoridades competentes, atingindo assim o objetivo das autoras.
Não é fácil ser erótico, ou mesmo sexual, sem se tornar vulgar (...). Há um equilíbrio muito subtil entre a beleza e a carniça, entre o enlevo e a escatologia.
Na literatura romântica, que teve o seu apogeu qualitativo no século XIX, mas que ainda é consumida em quantidades industriais, o sexo raramente é descrito. Muitas vezes, aliás, o enredo consiste na dificuldade de os apaixonados consumarem sexualmente o seu amor, ou por pudor, ou pelas pressões familiares e sociais. No romance literário, o sexo era muitas vezes visto como a antítese ou a degradação do amor. Uma aberração contranatura, diríamos nós hoje, que vemos o sexo consensual como uma materialização de sentimentos, ou uma atividade saudável e desopilante. A literatura romântica contemporânea vive bem sem descrições sexuais, mas não hesita perante elas, quando o autor acha necessário para esclarecer a natureza das relações entre os amantes.
Para quem escreve ficção, não é fácil ser erótico, ou mesmo sexual, sem se tornar vulgar – entenda-se por vulgaridade o mau gosto, a crueza que choca e não exalta. Há um equilíbrio muito subtil entre a beleza e a carniça, entre o enlevo e a escatologia (descrição gráfica de “atividades”). Quando não se quer andar com a câmara para o fogo da lareira, é preciso escrever o que está a acontecer. Pedindo desculpas por me citar, eis aqui uma cena de Pesquisa Sentimental, publicado em 2009:
“No sofá. Delfina, deitada de costas com as longas pernas dobradas para cima, os pés a apontar ao céu, e os longos braços atrás da cabeça, parece uma louva-a-deus mitológica com cabeça de mulher. No meio dela, braços esticados para manter a distância e poder vê-la, Alexandre, encantado, move-se lenta e determinadamente, como um titã a espetar a espada fulminante. O tronco magro de Delfina, os seios de Botticelli, o rosto iluminado, a expressão de dor, prazer e submissão — Alexandre tem à sua frente um quadro vivo, com traços fortes e ricas cores. Delfina geme baixinho, dentes cerrados, olhos aquáticos. Leva as mãos ao peito dele, a apoiar, tocar, mexer.”
As opiniões sobre a beleza explícita dum texto como este variam, com certeza. Mas quando foi publicado não provocou polémica de maior. No princípio do século XXI, em Portugal, o sexo pode ser sensual, ou a sensualidade ser sexual, sem que desabem as colunas do templo, ou os esbirros instaurem um processo.
Não é esta a situação universal, como se sabe. Mas em qualquer momento deste mundo esquizofrénico, convivem, mesmo que mal, sensibilidades muito diferentes. Uma coisa é certa, definitiva, universal: o sexo há de existir sempre, a sensualidade encontrará o seu espaço, e a literatura saberá exprimi-los com força e beleza.
Artigo originalmente publicado na edição de maio 2019 da Vogue Portugal.