Fotografia de SillDA.
O amor é, por norma, doce. Mas o seu gosto adocicado nem sempre é um bom sinal. Fenómenos como o love bombing provam que, por trás de uma doçura artificial, esconde-se um perigoso veneno.
“Uma dentada e todos os teus sonhos se tornam realidade.” As palavras da vilã da Branca de Neve são convincentes. Quem pode culpar a tentação da protagonista? Uma maçã, normalmente promessa de doçura, é inconspícua. Só que atrás do seu brilho vermelho esconde-se um subtil, mas sinistro, veneno. Como fábula que é, o conto dos irmãos Grimm ensina-nos uma importante lição: nem tudo o que parece é. Mesmo fenómenos considerados objetivamente positivos, como o amor, podem conter em si traiçoeiras armadilhas. O love bombing é uma tática que parte deste conceito. O fenómeno, reconhecido nos anos 70, tem um nome (traduzido à letra será “bombardeio de amor”) que nos explica mais ou menos tudo o que precisamos de saber a seu respeito: love bombing é uma estratégia utilizada em relações amorosas onde uma das pessoas bombardeia a outra com atenção e afeto em quantidades esmagadoras. Comentários aparentemente atenciosos, como “Nunca conheci ninguém como tu”, “As tuas piadas são engraçadas”, “A forma como te movimentas é deslumbrante”, “És a pessoa mais bonita que já conheci”, são alguns dos exemplos que Chitra Raghavan, psicóloga clínica e professora catedrática na Universidade da Cidade de New York, nos aponta. A especialista, que foca a sua investigação nas possibilidades traumáticas associadas à distorção do amor, educa-nos sobre as diferentes dimensões do love bombing. Ainda que os elogios sejam doces, por detrás destes esconde-se algo venenoso. “Estas glorificações são formas de desvendar os nossos maiores medos numa relação”, explica Raghavan. De traumas com relações ao casamento dos nossos pais, os love bombers “percebem o que nos magoa e proporcionam a solução”, elabora. Para além destas assustadoras intenções, o love bombing pode ser extremamente nocivo para a pessoa que o sente na pele. “Esta atenção não é boa porque pode rapidamente ser utilizada como uma arma, discursos como ‘Se não aceitas este afeto és ingrata’ são frequentes nestes casos”. De igual forma, a quantidade absurda de atenção pode levar ao consumo total da vida de quem a recebe. “O que o love bombing procura fazer é confundir, o bombardeamento constante ocupa-nos a mente e impede-nos de tomar decisões que se baseiam no nosso bem-estar” sublinha Raghavan, que conclui: “Um amor saudável é suposto fazer com que o nosso mundo cresça, mas neste tipo de relações o nosso mundo encolhe, passamos a ter menos energia para tudo e para todos.”
“Ao princípio era fantástico. Lembro-me de fazer um daqueles testes de linguagens de amor e chegar à feliz conclusão de que ele me dava tudo: afeto, tempo de qualidade, presentes, carinho, tudo o que podia precisar… rapidamente me tornei co-dependente,” é assim que Farah Thorndycraft descreve a sua primeira relação. Em entrevista à Vogue Portugal, a jornalista britânica relata o que agora identifica como love bombing. “Foi no meu primeiro ano da faculdade, estava longe de casa pela primeira vez e ele deu-me um apoio que não conseguia encontrar em mais lado nenhum”, elabora. Este estado de euforia romântica não durou muito — bastou que Thorndycraft começasse a demonstrar alguma atenção para que esta parasse. “Após dois meses, toda aquela devoção a que me tinha habituado desapareceu de um dia para o outro”, confirma a jornalista. A mudança súbita era recebida com confusão e ressentimento: “Não compreendia o porquê da mudança da sua disposição, deixava-me desesperada pela atenção a que me tinha habituado. Claro que contestava, reclamava com ele pela disparidade que sentia, de um dia para o outro, sentava-se ao meu lado como se não me conhecesse, tornou-se frio e distante do nada.” Como resultado da mudança em temperatura, também a autoconfiança da jovem jornalista congelou. “Houve uma profunda mudança em mim, tornei-me uma pessoa decididamente insegura. Estava diferente, interrogava-me constantemente o que é que tinha feito de mal.” Ao princípio este tipo de atitude refletia-se apenas na sua relação, mas, com o passar dos meses, a inquietação transbordou para o resto da sua vida social. “Os meus amigos começaram a notar que estava diferente, culpava-me a mim própria por tudo e por nada,” relata Thorndycraft.
O love bombing é frequentemente interpretado como o mero ato de derramar a maior quantidade de “amor” possível, mas esse afeto avassalador é apenas a ponta do icebergue. Após a fase mais reconhecível deste padrão comportamental, revelam-se as suas verdadeiras consequências. “O que love bombing cria é uma dependência,” explica-nos Raghavan. A professora catedrática explica o fenómeno ao reduzi-lo ao seu ponto mais basilar: “Estas pequenas, mas constantes, doses de amor são picos de dopamina, a partir do momento em que estes param, começa-se a sentir abstinência.” A vulnerabilidade do afeto inicial é como um engenhoso isco. Assim que se morde a doce maçã, sente-se o seu veneno. “A pessoa que é sujeita ao love bombing perde todo o seu poder e envereda por um caminho perigoso”, justifica Raghavan. É através desta dinâmica de poder que se fundamenta a incapacidade de abandonar a relação assim que esta azeda. Tamam Duhair relata um princípio de relação semelhante àquele descrito por Thorndycraft: “Sem me aperceber, tornei-me extremamente dependente dele.” É assim que a especialista em comunicação de beleza descreve a sua primeira relação. “Durante os primeiros três meses, ele era a pessoa mais doce possível, comprava-me prendas caras, ouvia-me sempre que precisava… Ao fim de três semanas pediu-me para me mudar para a casa dele, uma casa que era substancialmente melhor que a minha… Ele prometia-me uma vida muito boa e eu confiei nele.” No entanto, ao contrário do caso de Thorndycraft, o ex-namorado de Duhair começou a demonstrar comportamentos abusivos. “Ele sempre foi uma pessoa extremamente invejosa, durante a nossa relação ele não me deixava fazer amigos e incentivava-me a afastar-me da minha família. Tinha de estar sempre a partilhar a minha localização”, elabora. A perversão do seu romance foi algo que Duhair sentia como uma responsabilidade nos seus ombros. “Estava a ser constantemente manipulada, quando me insultava e me chamava nomes eu assumia que era a verdade e que de facto a culpa de estarmos constantemente a discutir era devido ao facto de não respeitar o seu controlo.” Estas constantes flutuações mantiveram a especialista em beleza confinada na sua relação. “É difícil sair de uma situação destas porque, quando as coisas estão bem estão muito bem e de repente cresce uma esperança fútil de que se calhar nunca mais vamos discutir e, assim que as coisas começam a ficar piores voltamos para a estaca zero… é uma versão corrupta do conceito de amor,” descreve.
O LOVE BOMBING É FREQUENTEMENTE INTERPRETADO COMO O MERO ATO DE DERRAMAR A MAIOR QUANTIDADE DE “AMOR” POSSÍVEL, MAS ESSE AFETO AVASSALADOR É APENAS A PONTA DO ICEBERGUE. APÓS A FASE MAIS RECONHECÍVEL DESTE PADRÃO COMPORTAMENTAL, REVELAM-SE AS SUAS VERDADEIRAS CONSEQUÊNCIAS.
O caso de Duhair é um exemplo de uma das razões pelas quais o love bombing pode ser tão perigoso. De acordo com a Dra. Chitra Raghavan, a dependência que cria facilita a manutenção de relações tóxicas ou até mesmo abusivas: “Tem de se ter atenção à linguagem e às reações iniciais, não é normal um parceiro levantar problemas por nos encontrarmos com amigos ou com família, esse tipo de resistência pode ser um sinal problemático” desenvolve a professora de psicologia. “É impossível determinar se uma relação será abusiva logo no seu início, mas necessidade de controlo e ciúmes são sempre presságios perigosos”, alerta. No entanto, Raghavan acrescenta que na maioria dos casos o love bombing é feito de forma “intencional, mas não consciente.” A psicóloga americana descreve uma tipificação do love bomber mais comum: “Normalmente é uma pessoa extremamente ansiosa e carente que desfruta dos elogios que o seu carinho suscita. O seu comportamento alimenta uma intensa ansiedade e medo de estar sozinha. Ao idealizar um parceiro romântico, estas pessoas esperam que se crie uma relação intensa o suficiente para que, quando a sua ‘parte má’ for exposta, já seja tarde demais.” As relações com love bombers são comandadas por uma atitude de tudo ou nada. Raghavan especifica: “Uma relação saudável é caracterizada pela capacidade de crescer progressivamente, é normal quando se está a conhecer uma pessoa que se encontrem coisas de que não se gosta, é necessário negociar, discutir e remendar uma relação para que esta cresça.”
Mas não vivemos num mundo a preto e branco, é difícil entender o que é love bombing e o que é o afeto normal dos dias cor-de-rosa do início de uma relação. “Atualmente usamos a expressão demasiado”, diz Farah Thorndycraft, “acho que banalizámos o seu significado.” No seu caso, a intensidade da relação fez com que, mesmo conhecendo o conceito, demorasse algum tempo até identificar o padrão. “Para mim, não foi algo de que me conseguisse aperceber até um ano depois da minha relação ter terminado”, conta. “No início de todas as relações existe atenção e afeto extra, é algo do qual devemos desfrutar sem paranóias,” lembra Raghavan. A psicóloga enfatiza que é importante não sermos nem oito nem oitenta. “É importante estar atento, mas não nos podemos privar das partes mais divertidas de um romance, temos de ser gentis connosco mesmos.” Mas então como podemos diferenciar entre love bombing e a euforia própria do começo de uma relação? “Primeiro é sempre bom ver a reação quando pedimos um pouco de espaço e, se calhar mais importante, é necessário consultar quem nos é mais próximo”, aconselha Raghavan. E relembra: “Quando estamos no olho da tempestade não conseguimos separar o saudável do exagerado, é necessário pedirmos uma opinião externa.” Tanto Thorndycraft como Duhair concordam. Para ambas a maior red flag foi o desconforto que sentiam em revelar o que se passava na relação. A primeira desabafa: “Acabei por me separar de muitos amigos pela forma como o meu ex-namorado me tratava, preocupavam-se com a pessoa que me estava a tornar por causa dessa relação.” Duhair partilha uma história semelhante: “Tinha medo de que me dissessem para acabar a relação, por isso acabei por esconder muito do que sabia que iria mudar a opinião que tinham dele.” As três entrevistadas narram uma fábula semelhante. Para evitar armadilhas de vilões, quer sejam madrastas más ou caçadores confusos, temos de confiar nos nossos sete anões.
Publicado originalmente no The Love & Hope Issue, de dezembro 2023, disponível na nossa e-shop.
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