Imagem do emblemático chapéu-sapato surrealista de Schiaparelli, circa 1937, sobreposta pela foto de um look de Daniel Roseberry para a coleção de Alta-Costura do outono/inverno 2024 de Schiaparelli. Fotografia: Getty Images. Artwork de Miguel Canhoto.
Passamos por um novo Renascimento. Esqueçam-se frescos e “sfumatos”, as reinvenções atuais vestem-se uma perna de cada vez. À medida que a Moda se torna cada vez mais lucrativa, legados das “maisons” de ontem tornam-se irresistíveis para aqueles que estão esfomeados por lucros.
É uma excelente altura para se ser um fashion addict. A indústria encontra-se completamente enraizada no mainstream. Nunca houve tantos olhos fixados no desenvolvimento da Moda e, como tal, esta nunca foi melhor. Ainda que possamos debater sobre a nostalgia do passado, o facto é que a atenção que a indústria tem no presente atrai investimentos milagrosos. Sim, há muito de mau quando o nosso interesse passa a ser um interesse comum. Mentalidades de “eu gostava deles antes de serem famosos” enchem-nos a mente e por vezes até nos escapam pelos lábios. Mas não podemos deixar que tais mesquinhices nos invadam a cabeça. Foquemo-nos essencialmente no lado positivo deste crescimento, porque se nos fixarmos na parte negativa nunca nos vamos calar. Ok, talvez abramos a exceção só para este bocadinho. “Ah, a Schiaparelli foi fundada por volta de 2018.” Quando ouvi tais palavras num podcast senti o meu sangue a ferver. Não que espere que todos tenham o mesmo conhecimento que eu quando se trata de Moda, mas ouvir tais erros faz-me apelar a uma divindade em que não acredito. Muitos são aqueles que parecem confusos sobre o funcionamento das marcas mais antigas da indústria. Para o amante mais casual da Moda, a existência de etiquetas como Schiaparelli ou Courrèges pode ser enigmática. Mas, ainda que acreditar que existem marcas que são reanimadas de forma “artificial” quebre a fachada glamorosa da indústria, o conceito não é difícil de se entender. Considere-se este texto como uma explicação para o atual ambiente do mundo da Moda, ou melhor, como um guia detalhado do que fazer — e mais importante, do que não fazer — quando se trata de reativar uma marca.
Se é lição que se quer, é lição que se terá. Ponham-se os telemóveis em modo avião e preste-se atenção ao quadro. Há alguns passos a ter em conta, se reativar uma marca é o objetivo. Comece-se pelas etapas menos entusiasmantes (são sempre as primeiras): antes de podermos chegar aos estimulantes processos criativos e exercícios de ego artísticos, temos de ultrapassar o propósito de um renascimento — dinheiro. Apesar das suas tentativas consecutivas de o negar, a indústria da Moda não passa de exatamente isso, uma indústria. Ainda que se apresente como uma exuberante e artística exploração de autoexpressão, a Moda tem um propósito que escapa ao seu charme: o lucro. Como tal, é preciso que alguém queira tomar essas rédeas financeiras, neste caso um investidor que esteja disposto a pagar pelas aventuras criativas de um designer. Óbvio que não é a bondade que comanda tal decisão, mas sim a fé, a esperança de que o investimento tenha um retorno considerável. O que, na era da Moda mainstream, não é difícil — muitos são aqueles sedentos de se alastrar para o cada vez mais popular e rentável setor. Em 2024, Bernard Arnault, CEO do grupo LVMH, responsável por marcas como Dior e Louis Vuitton, é um dos homens mais ricos do mundo. Poderíamos interrogar-nos do porquê de reativar uma marca antiga ao invés de fundar uma nova, mas a questão não nos travará durante muito tempo. A lógica é de facto bastante simplista: se foi bem-sucedido uma vez, será bem-sucedido outra vez. Do ponto de vista do cliente, é bem mais fácil vender a ideia de algo que tem um legado, especialmente na indústria da Moda de luxo. A razão de ser desta ideia é simples: quando se pede a um cliente para gastar centenas, muitas vezes milhares, de euros por um bem que se pode encontrar por meras dezenas, é necessário dar-se uma justificação, e qualidade não é suficiente. Quando se compra luxo, compra-se estatuto, compra-se legado. É difícil estabelecer essa história a partir do nada. No entanto, se for o caso de uma marca que existe há séculos, o marketing escreve-se a si próprio. Luxo é fictício — é apenas considerado quando um grupo de pessoas concorda sobre o seu estatuto. Se existe uma história de dezenas, muitas vezes centenas de anos, então não é preciso convencer ninguém que algo é luxo, milhões de outros já o estabeleceram a priori.
Certo, agora que a fase aborrecida já passou, podemos entrar na segunda etapa, a mais desafiante das duas: a direção criativa. Não basta o dinheiro, é necessário ter um designer que se assuma como messias de uma empresa. Ao contrário da vertente financeira, o desafio de reabilitar uma marca é mais considerável do que começar uma marca do nada. Se fundar uma linha fosse a preocupação, um diretor criativo poderia simplesmente implementar a sua visão, estampar a sua linguagem visual e preocupar-se em evoluí-la em futuras estações. No entanto, o desafio quando se trata do renascimento de uma casa baseia-se na manutenção de um ADN pré-existente. Não pode ser algo completamente inovador, seria uma violação completa do acordo que se faz quando se decide reativar uma maison. Se tal escolha é feita, assume-se que existe a intenção, ou pelo menos o desejo, de continuar algo que teve um fim prematuro. Semelhantemente, não pode ser algo baseado nas criações do passado — nesse caso tratar-se-ia de mera imitação. Isto para não dizer que a visão do passado é muitas vezes antiquada. É necessário enquadrar os códigos da etiqueta na indústria do presente. Materiais, silhuetas, acessórios: todos devem poder apelar às sensibilidades modernas.
Este equilíbrio sensível é também necessário que se enquadre no ambiente da indústria. Olhe-se a título de exemplo o que é capaz de ser a melhor prova deste piedoso milagre: Schiaparelli sob o comando de Daniel Roseberry. O génio deste renascimento é inspirador. Antes de podermos analisar a intervenção de Roseberry é necessário entender o ADN da marca — tal como os designers previamente abordados, é necessário sabermos do que falamos antes de falarmos. Schiaparelli foi fundada em 1927, por Elsa Schiaparelli, como uma marca que confundia as linhas entre arte e Moda. Integrada no grupo de artistas surrealistas, a designer italiana abriu a sua linha de roupa e acessórios em Paris como a solução para a pergunta “pode-se vestir arte?”. A resposta — evidentemente positiva — foi ilustrada nos seus chapéus-sapato, vestidos-lagosta e botões extravagantes. Baseada nos trabalhos dos seus contemporâneos, como Salvador Dalí, Schiaparelli inspirava-se no corpo humano: ossos eram acessórios, músculos eram bordados e olhos usados como brincos, pendurados nas orelhas. As criações de Schiaparelli foram um sucesso inegável no mercado francês na primeira metade do século XX. Ao contrário da sua competição, que se focava em simplificar ou perdurar o legado de Moda, a designer italiana concentrava-se na sua expansão. No entanto, como tudo o que é bom, também o reinado de Schiaparelli no topo da indústria chegou ao seu fim. A Segunda Guerra Mundial e a consequente invasão nazi de Paris arruinaram o negócio e, após tais eventos traumáticos, Elsa decidiu fechar o seu negócio à produção de roupa, em 1954, mantendo apenas os perfumes mais populares da marca. Só passados mais de 50 anos, em 2007, é que um investidor reconheceu o potencial da maison. O empresário Diego Della Valle apostou no sucesso da empresa e nomeou o designer Marco Zanini como diretor criativo. Finalmente, em 2014, o nome Schiaparelli apresentou a sua primeira coleção em seis décadas. Mas as primeiras tentativas foram menos bem-sucedidas. Neste caso, Schiaparelli tinha apenas a primeira componente da fórmula acima descrita. Ainda que repleta de investimento, a marca carecia de uma direção criativa forte. Isto é, até 2019, quando Daniel Roseberry foi contratado. Ainda que com dois meses para criar a sua primeira coleção, a diferença foi notável. A partir da sua primeira coleção, Roseberry devolveu o nome da marca ao seu prévio estatuto global. Ainda que através da sua lente contemporânea, o designer americano apela inteligentemente ao legado de Schiaparelli. Os temas anatómicos e referências naturais retornam à Alta-Costura pelas mãos de Roseberry, sempre com um tom surrealista.
O sucesso incomparável da Schiaparelli inspirou uma série de renascimentos. Muitos foram aqueles que entenderam o potencial de reativar marcas que, ainda que bem-sucedidas no passado, tenham encontrado fins menos felizes. Flutuando até ao extremo estético oposto da Schiaparelli encontra-se outra marca renascida: a Carven. Fundada em 1945, a então maison de Alta-Costura foi uma criação de Marie-Louise Carven. Ainda que idealizada como uma linha pensada para mulheres petite, a marca acabou por se tornar sinónimo de materiais leves e por ser uma das primeiras a estabelecer uma linha de pronto-a-vestir. O seu sucesso, apesar de não ser astronómico, foi notável dentro do mercado francês, estabelecendo uma clientela leal. No entanto, após a reforma da sua fundadora em 1993, a marca não conseguiu sobreviver. Isto é, até 2009, quando o grupo chinês Icicle adquiriu a marca. Tal como no caso de Schiaparelli, a primeira tentativa não foi bem-sucedida. Guillaume Henry foi o primeiro a assumir o controlo criativo. Sob o seu controlo, a maison focava-se em silhuetas minimalistas — essencialmente, o estereótipo do chamado estilo francês. No início de 2023, a designer britânica Louise Trotter foi contratada como substituta de Henry. Através da sua visão, a Carven voltou a entrar no zeitgeist da indústria da Moda. O seu estilo minimalista, combinado com o legado da maison, tem-se provado uma receita triunfante. A Courrèges passou por algo semelhante, através do financiamento de François-Henri Pinault, filho do dono da Kering, o segundo maior conglomerado de marcas de luxo. Com o apoio deste, a marca, famosa pelo seu design remetente à Space Age, encarregou Nicolas Di Felice da sua direção. A característica sensualidade modesta do designer belga adaptou os códigos da Courrèges perfeitamente. Rochas, Poiret, Balmain — o que não nos falta são exemplos deste peculiar fenómeno. Em todos os casos, uma lei permanece: sem direção criativa, não interessa quanto dinheiro é investido. Existe uma razão pela qual os designers são estrelas na indústria, sem estes não existe Moda. À medida que o setor cresce e atrai os seduzidos, não pela fantasia que vende, mas pelo lucro que promete, o reconhecimento dos criativos não pode ser descontado ou esquecido, é à custa destes que a Moda se faz.
Publicado originalmente na edição "The Big Book of Trends" da Vogue Portugal, de setembro 2024, disponível aqui.
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