Opinião   Palavra da Vogue  

Até sempre, Magazino

09 Dec 2021
By Magazino

Hoje, 09 de dezembro de 2021, o mundo da música português está de luto. Magazino partiu dois anos após ter sido diagnosticado com leucemia. A sua força, resiliência e perseverança serão eternas, assim como a sua música.

Hoje, 09 de dezembro de 2021, o mundo da música português está de luto. Magazino partiu dois anos após ter sido diagnosticado com leucemia. A sua força, resiliência e perseverança serão eternas, assim como a sua música. 

Abaixo, recordamos o testemunho que Magazino escreveu, na primeira pessoa, para a Vogue Portugal em setembro de 2020.

Fui convidado a partilhar o que tenho vivido nos últimos tempos e a forma como tenho encarado a vida. Os últimos meses do ano passado foram muito agitados, passei vários fins de semana seguidos a viajar: toquei na Holanda, Brasil, Marrocos, Bélgica, Inglaterra, Paraguai, Argentina, Áustria, basicamente chegava a casa em Lisboa à segunda-feira e descansava até quinta para uma nova viagem. Do nada, comecei a sentir um cansaço extremo, que julgava ser do jet-lag, noites mal dormidas, almofadas diferentes a cada noite, enfim, pouco descanso julgava eu. No dia dois de dezembro, e acabado de chegar de Viena, deixei as malas em casa e fui direto ao hospital. Tinha um novo gig na quinta-feira, em Moscovo, e queria atacar o quanto antes as dores que sentia no corpo. Entrei no hospital às 11 da manhã e depois de uma parafernália de exames, e repetição dos mesmos, por volta das oito da noite a responsável médica fechou-me num quarto e disse-me: “Tenho uma má notícia para lhe dar, tem uma leucemia.” Lembro-me que, na altura, entendi pneumonia e pensei para mim “Epá, não vai ser fácil ir para Moscovo na quinta-feira, com o frio que lá faz e com uma pneumonia...” Entretanto a médica disse-me que já não podia sair do hospital, e aí percebi que afinal era uma leucemia. Fiquei de rastos, liguei ao meu irmão, a chorar, de rastos. Fui internado, comecei a fase quimioterapia oral – passava umas semanas internado no hospital; voltava para casa alguns dias; piorava e lá voltava mais umas semanas ao hospital para ficar internado. Andei neste vaivém três meses, estava entregue à doença, no hospital sempre na cama, em casa no sofá, não me mexia, completamente resignado. 

Num dos internamentos no Hospital da Luz, um médico catedrático disse-me que ia precisar de um transplante de medula óssea. Transferiram-me para o IPO, onde confirmaram o diagnóstico. Não andava, era empurrado numa cadeira de rodas pelo meu amigo Cruz, e saí a chorar do IPO. Vivo num segundar andar sem elevador, o clássico prédio lisboeta, e os meus amigos carregaram comigo escada acima até me deitarem na cama, coitados, deitavam-me na cama e eles atiravam-se para o sofá para recuperarem forças. Felizmente nessa semana tive quatro pessoas, que curiosamente não se conheciam entre si, e que iam em dias diferentes à minha casa visitar-me. E que mudaram o meu estado de espírito. A Ginger, que me corta o cabelo, ligou-me à terra; o Bruno, amigo brasileiro que vive em Londres e que por coincidência estava de passagem em Lisboa e jantou na minha casa, deu-me um autêntico recital de como o poder do pensamento positivo tem influência na nossa vida; o Fernando, que veio do Algarve para me obrigar a levantar do sofá e a andar apoiado nele alguns dias a sofrer umas dores horríveis; e por fim o chef Ljubomir, que foi a minha casa cozinhar –  e quando o vi a subir as escadas coxo, de canadianas, carregado com sacos, pensei “Este gajo vai dar-me uma descasca do caraças”, e assim foi, e ainda bem, apertou comigo naquele jeito dele rude e fez-me ver que tinha de mudar o mindset. 

A minha vida mudou naquela semana. No dia seguinte, acordei e comecei a escrever, dos apontamentos que tirei verifiquei que tinha aceite a doença mas que não a tinha interiorizado, fi-lo em dois tempos do pensamento diário na doença (problema), passei a focar-me apenas e só na solução, a deixar de me questionar constantemente “Porquê, porquê eu?”, e passei a questionar-me “Como é que vou dar a volta a isto, o que é que está ao meu alcance para vencer isto?” Nessa semana deitava-me todas as noites cheio de dores e a tomar doses massivas de morfina, mas pensava sempre: “Amanhã vai ser mais um dia rumo à recuperação, vai ser melhor do que hoje”, e foi assim que comecei a trabalhar o poder do pensamento positivo, fundamental em todo este processo. Comecei a sentir cada vez mais otimismo, a sentir-me muito mais confiante, alegre, e não tenho dúvidas que a minha mente positiva atuou de forma muito poderosa sobre o meu corpo, deu-lhe energia e fortaleceu-o, passadas duas semanas já andava tranquilamente sem dores pela casa e tinha deixado de tomar morfina. Durante esse tempo percebi com toda a clareza que a cabeça manda, e o corpo reage. Comecei a pensar todos os dias ao acordar “Epá, estou no intervalo da minha vida, a segunda parte está quase a começar”, e como num bom jogo de futebol é nela que tudo se decide, ou seja o melhor ainda está para vir e nada mais fantástico que reconstruir a vida com entusiasmo e juntar os pormenores que faltaram à primeira parte para dar por vencida esta odisseia. 

Recuperei peso, comecei a caminhar, a andar de bicicleta, a comer muito bem. Empenhei-me a fundo, porque este é, sem dúvida, o momento mais importante da minha vida. Fui adiando ao máximo a quimioterapia porque ainda não tinha dador de medula óssea compatível comigo, mas cheguei a um ponto em que o meu corpo já não aguentava mais e a minha médica do IPO (Dra. Francesca Pierdomenico) chamou-me para ser internado entre seis a sete semanas, para enfrentar um primeiro ciclo de quimioterapia. A Dra. Francesca é italiana, radicada há muito tempo em Portugal, é linda, alta, um pouco mais nova que eu (tenho 42 anos), fala muito com as mãos, como boa italiana que é. Gosto muito dela, sabe que não gosto de rodeios, quando fala comigo é para ir direta ao assunto, por pior que seja, e já saí muitas vezes a chorar depois das nossas consultas, mas isso já lá vai; agora já brinco com ela, e faço sempre paródia dos resultados dos exames, quer sejam bons ou maus, acho que ela fica até meio sem jeito com a minha boa disposição perante as más notícias que ela me dá. No dia dois de junho lá entrei no IPO para o internamento, levei uma mala cheia de roupa, uma pedaleira para me exercitar, um órgão para tocar, livros, um bloco para escrever e o iPad. Tinha de ocupar a cabeça durante aquelas semanas que ia estar fechado num quarto. Cheguei ao quarto e tinha duas mulheres e um homem, todos mais velhos que eu. Em poucos dias pus alguns a pedalar, toquei órgão para animar as hostes, e consegui que se falasse apenas na solução e não no problema, que se falasse apenas do futuro e não do passado. Foi uma vitória muito suada porque o assunto ao início era invariavelmente a doença, quando ganhei confiança e passei a “liderar” o quarto já ninguém falava do problema, o foco era agora a solução, a alimentação, o exercício, e o corte total com as notícias da televisão. 

Uma das minhas colegas de quarto tinha 60 e muitos anos era muito católica e todos os dias às 6.30 da tarde se ligava pelo YouTube ao Santuário de Fátima e acompanhava a homilia, rezava e cantava. Numa das tardes, estava um calor insuportável e eu andava de tronco nu, passava ao lado dela e ela fazia-me sinal para vestir alguma coisa, eu ria-me e dizia “o sr. Padre não está a ver, amanhã canto uma ave-maria para compensar.” Dava-me muito bem com ela. Sou agnóstico, mas fiz a primeira comunhão e o crisma e ainda sei as principais orações. Ao fim de 15 dias internado, e depois de levar com dez horas diárias de quimioterapia, resolveram fazer teste à COVID-19 a todos os pacientes internados porque um dos funcionários tinha testado positivo. Fiz o teste ao fim da tarde e de madrugada acordaram-me: “Vamos ter de o isolar já e transferir para outro hospital (o IPO é um hospital covid free) deu positivo ao teste. Bem, pensei. “Não tenho sintomas, não há-de ser nada, vou conhecer mais um hospital, por norma passo um terço do ano em hotéis, em 2020 já passei mais de metade do ano, mas em hospitais (já vou em sete diferentes), e assim foi, transferiram-me para o Santa Maria. Foi um aparato para me tirarem do IPO, os enfermeiros equipados como se fossem para espaço e eu a sair pelo meu próprio pé. Em Santa Maria, mais do mesmo, entrei para uma ala só para pacientes infetados com COVID-19, e fiquei num quarto isolado. Ao princípio foi um pouco assustador, só via os olhos dos enfermeiros, médicos e auxiliares, mas rapidamente comecei a conhecer a voz e o sotaque, e a chamá-los todos pelo nome, percebi que não estão muito habituados a isso, mas que gostam de ser reconhecidos. Estive uma semana a piorar de dia para dia, além do vírus e da quimioterapia tinha uma bactéria alojada no meu corpo que se julga ter entrado através do cateter que tinha no pescoço. A situação começou a ficar muito grave, febres altíssimas, cada vez tinha de ter mais oxigénio assistido, e nem me lembro dos últimos dias antes de entrar em coma. 

Ligaram para a minha família a informar que tinha passado para os cuidados intensivos e que estava em coma, ligado a um ventilador. O diagnóstico era grave. Passados 30 e poucos dias acordaram-me. Foi um dia muito complicado. Lembro-me de ter enfermeiros à minha volta, só lhes via os olhos, estavam vestidos como se fossem para o espaço, não sabia o que estava ali a fazer, não me reconhecia, não me conseguia mexer, e não conseguia falar, eles tentavam explicar-me quem era com uns vídeos meus a tocar, depois pedi para me ver no telefone e não tinha cabelo, não combinava com a pessoa que estava nos vídeos e eu não reconhecia nem um nem outro. Chorei a noite toda, segundo dizem, e no dia seguinte voltaram a tentar elucidar-me. No meio disto, a televisão estava ligada e há um anúncio da MEO a passar a toda a hora e reconheci a protagonista, apontei para a TV e fiz um gesto a dizer que era minha amiga, eles perguntaram de onde a conhecia e aí sim, fez-se luz: a Marie trabalhou comigo na Bloop e acompanhou-me em várias tours que fiz. Aos poucos, voltei a mim e fiz sinal que sim, que era eu, mas que não sabia o que ali estava a fazer nem porque é que não tinha cabelo. Ainda hoje não sei quem me rapou o cabelo, eu bem pergunto aqui a toda a gente, mas eles riem-se e ninguém diz com medo da minha reação, ele já estava a cair por causa da quimioterapia e resolveram rapar quando estava em coma. 

Dois dias depois de ter acordado, e já consciente e em mim, comecei a receber vários testemunhos dos médicos e enfermeiros do que se tinha passado, e tiveram várias expressões bem reveladoras da gravidade da situação. “Bateste à porta da morte, entraste e conseguiste sair pela janela”, “Conseguiste dobrar o cabo das tormentas, onde toda a gente que lá chegou ficou pelo caminho”, “Tiveste os dois pés na cova”, “É incrível estares aqui a sorrir depois do que passaste.” Estes testemunhos, e o facto de ter sentido que todos queriam ver, com os seus olhos, que estava vivo, fez-me perceber que devo ter estado mesmo muito mal. Na verdade, não me lembro absolutamente de nada, a única memória que tenho dos 30 e poucos dias de coma é esta; o mar a bater muito forte e um turbilhão de cores infinito a envolver-me o corpo. Durante o coma encontraram um dador de medula óssea compatível dez em dez comigo, ou seja, 100%, o que é fantástico. As campanhas de apelo à doação que os meus bravos amigos fizeram surtiram efeito, ainda não sei quem é o dador, mas quero muito conhecê-lo apesar de saber que tal pode não ser possível. Os médicos disseram-me que me comunicaram do dador durante o coma e que esbocei um sorriso, quem sabe se não foi o clique para me agarrar à vida com as poucas forças que ainda tinha. Tudo isto teve uma enorme influência no meu estado de espírito, senti-me imensamente feliz por estar vivo, e senti-me sobremaneira motivado para enfrentar o que ainda está por vir.

Desta vez interiorizei e aceitei o estado em que estava muito rapidamente e lembro-me que pensei: “Se na outra vez fiquei quase dois meses para voltar a andar, agora com menos 21 quilos e só a mexer as mãos e completamente dependente, inclusive para comer, lavar os dentes e abrir uma garrafa de água, só me levanto desta cama daqui a seis meses.” Como também não falava nem conseguia escrever, fiz um plano de reabilitação muito objetivo na minha cabeça. Em sete dias tinha de conseguir movimentar-me sozinho na cama sem ajuda dos enfermeiros e auxiliares, em 14 dias o objetivo era conseguir passar para o cadeirão ao lado da cama sem ajuda, em três semanas conseguir manter-me de pé por alguns segundos, num mês conseguir andar, ainda que de forma condicionada. O que me assustou mais nem foi a parte locomotora, mas sim a destreza manual, além de estar completamente entubado e não conseguir falar, quando tentava comer pela minha mão a colher acertava invariavelmente no nariz. O hospital disponibilizou de imediato um terapeuta ocupacional que trabalha a destreza manual e um fisioterapeuta. Um trabalho fantástico, é o maior elogio que posso fazer, numa semana voltei a escrever e a fazer o que aprendemos em criança e temos como trivial, como o simples abrir de uma lata. A cada conquista caíam-me lágrimas de alegria, ao fim de alguns dias também recuperei a voz, o que foi fundamental para comunicar com a equipa dos cuidados intensivos. Ao fim de alguns dias já estava a pedir à fisioterapeuta para me pôr no chão, ela achava que ainda era cedo, mas todas as noites fazia exercícios extra na cama, fora do horário das sessões de fisioterapia, sem que os terapeutas soubessem, de forma a acelerar o processo. Eles ficaram muito surpreendidos com a minha rápida evolução, todos os objetivos que tinha estabelecido na minha cabeça foram superados bem antes do previsto e passadas duas semanas e meia, quando escrevo estas linhas, já estou a andar sem ajudas (ainda que pareça um robot). Outro obstáculo à recuperação era a comida do hospital. Estava a ser alimentado por sonda e tinha obrigatoriamente de passar a comer para ganhar massa muscular, mas a comida não é boa, tive uma conversa muito franca com o nutricionista do hospital, reajustámos a dieta e o que é certo é que até neste ponto consegui mudar o meu mindset e, apesar de continuar a não “sentir” a comida, passei a ter fome e desejo que a comida chegue. O ponto alto da refeição passou a ser o ananás em calda, algo que é impensável ter em casa e que sempre abominei, incrível como baixei a fasquia e me satisfaço tanto com duas rodelas de ananás em calda. Mais uma vitória, esta muito difícil, mas que me motivou ainda mais para seguir em frente.

Estou a escrever este testemunho ao fim de 80 dias de internamento, fechado num quarto sem poder receber uma visita que seja. Tive de fazer amigos para poder desabafar e também fazer rir os que diariamente cuidam de mim. Das dezenas de funcionários que todos os dias passam pelo meu quarto, destaco a enfermeira Elodie, a Dra. Cristiana, o Dr. Henrique e o singular Dr. Miguel Esperança, todos mais novos que eu, excelentes profissionais e incríveis no trato humano. Temos boas e longas conversas extra-saúde, às vezes distrai-os no tempo, mas têm sido os amigos que me faltam, fico feliz quando entram no meu quarto e sei que eles também, quando mais não seja pelo evoluir do meu estado clínico. Infelizmente continuo a testar positivo ao novo coronavírus, apear de já não ter sintomas, e enquanto não testar negativo não posso voltar ao IPO. No IPO vou voltar a fazer um ciclo de quimioterapia e, se tudo correr bem, faço de seguida o transplante. É um processo longo e penoso, toda a fase de adaptação a uma nova medula requer muita paciência e resiliência, mas estou mais motivado que nunca para avançar. Tenho tido vários relatos de pessoas transplantadas que sofreram alterações no palato, o cabelo renasceu, mas em carapinha (confesso que achava piada ter uma nova versão minha, estilo afro), o timbre da voz alterado, entre outras particularidades. Tenho objetivos bem concretos na minha cabeça, quero estar a 100% para tocar em Portugal e na Europa em junho de 2021, serei um gajo muito feliz se isso acontecer, fora da Europa irá demorar mais algum tempo porque tenho de levar um novo plano de vacinas como se fosse um bebé e algumas delas só posso tê-las ao fim de dois anos após o transplante. Hoje, e ainda antes do transplante, já me sinto uma pessoa diferente, alegre, supermotivado, bem-humorado, verdadeiramente entusiasmado para enfrentar este novo desafio, e tenho a certeza de que isso também se irá refletir na música que toco. Esse é outro desafio que se coloca pela frente: passado ano e meio sem tocar, fazer com que os bookers dos clubes, organizadores de festivais e promotores estrangeiros queiram que toque para eles, mas quanto a isso estou mais descansado, tenho consciência do meu valor e se mantiver as minhas capacidades intactas trabalho não me faltará, estou tão confiante no futuro que já disse inclusive ao meu agente quais os festivais em que quero atuar no verão de 2021. Traçar objetivos reais, muito concretos e bem definidos no tempo, motiva-me e dá-me imensa esperança quanto ao futuro que se avizinha.

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