Lifestyle  

Mais vale tarde

27 Mar 2024
By Sara Andrade

The Blossom Issue | Fotografia de Alena Zhandarova

“É precoce”, aplaude-se frequentemente. E se não se for precoce? E se só (mais) tarde na vida se desperta para conquistas normalmente associadas a outras faixas etárias? Há timings para determinados feitos e, em alguns casos, chega fora de horas (e bem). Este é um artigo para louvar os late bloomers. Talvez tenha chegado tarde, mas vem sempre a tempo.

Diz que Thomas Edison teria tido déficit de atenção nos seus anos escolares, que o físico Richard Feynman começou a falar mais tarde que o usual e que Pablo Picasso sofria de dislexia. Evoluíram tardiamente, de acordo com alguns parâmetros de aprendizagem, mas isso não os impediu de ficarem para a história com grandes feitos e reconhecimento nas suas áreas. “O que é que quer dizer exatamente late bloomers [desabrochar tarde]?” O tema é tão vasto que o jornalista e escritor norte-americano Rich Karlgaard escreveu todo um livro em torno dele: Late Bloomers: The Hidden Strengths of Learning and Succeeding at Your Own Pace (2019), é uma obra que explora este despertar tardio para determinadas atividades e experiências. “Simplificando, um late bloomer é aquele que realiza o seu potencial mais tarde do que o esperado; muitas vezes, têm talentos que inicialmente não são visíveis para os outros... E frequentemente realizam-se de maneiras inovadoras e inesperadas, surpreendendo até mesmo aqueles que estão mais próximos deles. Não estão a tentar satisfazer, a qualquer custo, as expectativas dos seus pais ou da sociedade, um caminho falso que leva ao esgotamento e à fragilidade, ou mesmo à depressão e à doença... Os late bloomers são aqueles que encontram o seu destino supremo por conta própria, à sua maneira.” E isto de ser late bloomer não é exclusivamente relativo à infância, como os exemplos acima, serve de rótulo também para referências da vida adulta. A atriz Meryl Streep, por exemplo, só se formou em representação pela Yale School of Drama aos 27 anos. A pintora folk americana Grandma Moses (Anna Mary Robertson Moses) só começou a pintar aos 78 anos, depois de ter deixado de lado os bordados devido a artrite. E a icónica Sharon Stone, como overachiever que é, encerra em si tanto o legado de uma criança precoce como o exemplo de late bloomer, ao formar-se aos 56 anos (depois de um interregno longo nos estudos – foi a criança prodígio que passou para a 2ª classe com cinco anos, por isso, a universidade aos 15 era uma consequência expectável, entrando em Escrita Criativa e Belas Artes, na Edinboro State University of Pennsylvania, com uma bolsa de estudo). Stone acabou por interromper os estudos, mas retomou-os em 2016, aos seus cinquenta e muitos, inspirada pela candidatura eleitoral de Hilary Clinton e pela noção de que podia fazer tudo o que quisesse (contava à Vogue Portugal, em entrevista, em 2019, para a edição Sex Issues). De certa forma, começar tarde também é, incongruentemente, vanguardista, porque se desafiam cânones de expectativas para se fazer a coisa – o que quer que essa coisa seja – à sua maneira e a seu tempo.

Aqui na Lighthouse Publishing, há episódios do género. Na fundação da editora, a única publicação da altura era a GQ Portugal e, apesar de há quase 20 anos em Portugal, era um título com boa morada em papel, mas desalojado na web. Estávamos em 2016 e um meio de comunicação social não ter website era uma espécie de unicórnio (não no bom sentido). O mantra para a sua chegada não podia assentar melhor: “não é chegar primeiro, é chegar melhor”, o que se adequa largamente à designação dos late bloomers. Talvez as conquistas destes nomes que “florescem tarde” não se coadunem com os lugares-comuns existentes, mas quando o fizeram, fizeram-no melhor tardiamente do que atempadamente. Por exemplo, muitos nomes conhecidos de diferentes setores demoraram mais a encontrar e a singrar no seu nicho do que outros, mas é possível que se assim não fosse, não teriam o reconhecimento de que hoje usufruem. Por exemplo, tanto Giorgio Armani como Christian Dior tinham já 41 anos quando fundaram as próprias empresas/marcas: Armani estudou medicina, alistou-se e combateu no exército, e Dior teve percurso similar, prestando o serviço militar antes de atingir o sucesso com a sua maison. A designer Vera Wang só chegou pela porta grande à indústria da Moda aos 40, depois de uma passagem pela patinagem artística e jornalismo, e a atriz Betty White tornou-se uma das mais galardoadas atrizes de comédia na história depois de integrar o elenco de The Mary Tyler Moore Show, em 1973, com 51 anos. Miguel de Cervantes tinha 58 quando escreveu o seu famoso Don Quixote; Ian Fleming escreveu o primeiro James Bond quando tinha 44 anos; Charles Darwin tinha 50 quando escreveu A Origem das Espécies; Suzanne Collins tinha 46 quando o primeiro volume da trilogia Hunger Games chegou às livrarias; Bram Stoker assinou o seu mais famoso romance, Drácula, aos 50 anos e Julia Child lançou o seu primeiro livro de cozinha (1961) também aos 50 (e que lhe serviu de pontapé de saída para uma carreira enquanto celebrity chef). The Hobbit, de J.R.R. Tolkien, foi lançado quando o autor tinha 45, sendo que completou The Lord of the Rings já quando tinha 56 anos; Henry Ford criou o revolucionário automóvel Model T em 1908, aos 45 anos; John Pemberton foi farmacêutico até aos 55 anos, altura em que desenvolveu a fórmula para a Coca-Cola, em 1886 (e o resto é história), o pintor Bob Ross começou o seu êxito televisivo The Joy of Painting com 41 anos e Lucille Ball aproveitou a sua grande oportunidade com o programa televisivo I Love Lucy, aos 40 anos. “Ficamos mais inteligentes e criativos à medida que envelhecemos, mostram as pesquisas”, referia Karlgaard em Late Bloomers. “A anatomia do nosso cérebro, as redes neurais e as habilidades cognitivas podem realmente melhorar com a idade e com o aumento das experiências de vida. Ao contrário da mitologia de Silicon Valley, os funcionários mais velhos podem ser ainda mais produtivos, inovadores e cooperativos do que os mais jovens... A maioria das pessoas, na verdade, tem múltiplos picos cognitivos ao longo da vida.”

E esses picos não têm necessariamente de significar fundar a sua própria empresa a caminho da terceira idade ou atingir status de celebridade global pós-reforma. Pode apenas fazer a diferença dentro da sua própria profissão (aliás, no livro supracitado, o autor norte-americano assegurava que “a pior coisa que uma empresa pode fazer é matar a energia criativa dos seus jovens e talentosos. A segunda pior coisa é cair cegamente em armadilhas evitáveis que um funcionário experiente e veterano pode ajudá-los a prever”) ou até primar por um achievement na sua vida pessoal. No meu caso, por exemplo, foi o skate que me apareceu tarde na vida. Tinha 38 anos quando vi uma jovem passar por mim num skateboard na praia de Carcavelos e nessa mesma tarde estava a comprar uma tábua baratinha numa conhecida loja de desporto, só para ver como me aguentava. Foi amor ao primeiro encontro com o chão. A partir daí, fui conquistando jeitos, velocidade, rampas, num surf skate que ainda me deixa muitos muros e pump tracks e manobras (o drop está na wishlist deste ano) por conquistar. Tenho 42 anos. E sinto que não teria esta vontade de arriscar a minha integridade física (com alguma maturidade) aos 11, aos 12, nem sequer aos 20. Não fui construída dessa forma daredevil. Descobri o desporto tarde na vida, também: na adolescência, não era grande fã de educação física e hoje tenho pena de não me ter viciado em exercício mais cedo, descobrindo os prazeres de um jogging matinal, por exemplo, já o calendário marcava três décadas. Mas talvez o timing tenha sido o ideal. Talvez se tivesse chegado mais cedo, o teria renegado à custa da idade da prateleira. Talvez tenha chegado no cruzamento de uma compreensão e vivências que me permitiram olhar para o workout de uma forma positiva, reconhecendo os seus benefícios sem o catalogar como foleiro quando o cool era a MTV e o ócio de sábado à tarde, ao mesmo tempo aproveitando os resquícios de energia que uma trintona ainda desfruta e que se exponenciam, por um lado, pela vontade de fazer valer o tempo e, por outro, pelo entusiasmo etário que parece ser mais escasso no ceticismo da juventude. Porque há coisas que devem começar, de facto, mais tarde. Um ex-namorado meu desistira da escola sem acabar o secundário – não gostava de estudar, quis formar uma banda, seguir o rumo da música. O sucesso ainda bateu à porta durante uns tempos, mas quis o destino que saísse do grupo e voltasse à escolaridade – já tinha 25 anos. A ideia era só fechar o secundário, ao menos ficava com o 12.o ano, só que a renovada maturidade dos 20 e tais versus os antigos 16 significou que ele, afinal, até gostava desta coisa de aquisição de conhecimento. Seguiu os estudos, tirou Cinema na faculdade e hoje está estabelecido no mercado dos filmes com provas dadas, algo que não teria acontecido se se forçasse a seguir o rumo natural das expectativas sociais sobre os estudos.

Eu não estarei a dar assim tantas cartas no skate como ele está na realização, mas talvez esteja a fazer melhor figura em cima de uma tábua do que qualquer indivíduo com metade da minha idade que se tenha contentado com o sedentarismo. Talvez esteja mais focada em conquistar quilómetros sobre quatro rodas do que a minha versão de 14 anos, que era mais bolos a ver videoclipes. Talvez, simplesmente, a confiança que tenho hoje me permita um arrojo que a Sara nos seus teens jamais ousaria assumir. E talvez essa confiança, que se prende largamente com uma experiência de anos em que se aprende a gostar de si mesma e a aceitar que também falhamos e que também caímos (do skate e metaforicamente) e que isso é ok, me tenha permitido experimentar coisas que uma consciência mais pueril da minha pessoa jamais conceberia. Todos temos os nossos calendários, que nem sempre se coadunam com os da sociedade em que nos inserimos. E isso é válido para (quase) tudo na vida, do trabalho ao amor e às relações. Há coisas que ainda estão para chegar. No meu caso, o saber andar de bicicleta, por exemplo: é uma modalidade que ainda não me assiste e que está bem aquém dos timings da sociedade nesta skill. Mas, tal como aquele episódio da Lighthouse Publishing, é preciso saber chegar. Talvez a passagem das quatro rodas às duas se faça com uma leveza, um estilo e uma destreza para manobras que a criançada nunca vai dominar. Mas eu sim. A seu tempo. Ou melhor, a meu tempo. 

Originalmente publicado no The Blossom Issue, disponível aqui

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