The Memories Issue
A roupa é um gatilho emocional que transporta, armazena e regista a memória. Todos nós temos recordações associadas às coisas que usamos diariamente — na verdade, basta abrir o armário para ter um flashback, positivo ou negativo. Mas será que ainda nos lembramos daquela peça que, na infância, teve um significado ultra-especial? Foi isso que perguntámos a alguns membros da redação da Vogue Portugal.
Carolina Nunes, Editora de Moda online
Corria o ano de 2009 e eu fui às compras com a minha mãe. Encontrei uma t-shirt, comprida (ou talvez era eu que não era muito alta), com um grafismo da Maggie Simpson com a sua chupeta. Dizer que aquela t-shirt tinha-me on a chokehold era estar a subvalorizar a situação toda.
Naquele verão tinha aquela peça em rotação máxima. Era usar, colocar no cesto da roupa suja e assim que aparecia no meu quarto lavada e passada (bendita mãezinha) era planear o outfit do dia seguinte. Por isso foi um no brainer escolhê-la quando estava a fazer a minha mala para ir de férias de verão com os meus pais e a minha irmã a Mójacar, Espanha. Aliás, creio que nem permiti a mim mesma usá-la a semana anterior para ter a certeza que estaria lavada no dia da partida. Acabei a mala e assim foi ela na bagageira do carro. Chegámos ao destino com o calor tórrido de 47ºC à sombra. Depois percebemos que este calor estava a ser causado, em parte, por um incêndio perto do hotel. Fizemos check-in, subimos até ao quarto, e poucos momentos depois o staff do hotel veio dizer que teriam que evacuar o hotel porque estava em risco de ser consumido pelas chamas. Gritaria instantânea, pânico geral, vidas em perigo. Saímos a correr, o meu pai pegou no carro e tentámos seguir pelo lado contrário ao incêndio. Seguimos caminho e neste momento a Carolina de 9 anos desata a chorar. Porquê? Será que foi porque viu as caras assustadíssimas dos seus pais e irmã? Não. Foi porque se lembrou que tinha a t-shirt da Maggie no hotel e que a podia perder para sempre! Insensível, eu sei, mas eu era só uma criança sem noção. A história acaba connosco de manhã a voltar para o hotel, depois de sabermos que seria seguro, e que o incêndio nunca tinha chegado às imediações do hotel. No verão seguinte acho que a t-shirt já não me servia e parei de a usar. Nunca mais a vi…
Sara Andrade, Diretora de Novos Projetos Editoriais
Uso sempre, em jeito também de amuleto, um anel que não era meu: em ouro, de design clássico, com uma água-marinha que ainda me parece ter a mesma cor dos olhos da minha avó paterna, a quem a peça pertenceu, a joia de família está agora no meu dedo como sempre esteve no dela. Cada vez que saía e segurava na mala, cada vez que a via pegar num copo, cada vez que a via passar o pente de dentes no cabelo e a perguntar-me se "ficou bem atrás?", cada vez que me dava a mão, lá estava ele, a refletir a luz, mas acima de tudo, a gravar momentos mundanos, agora por demais especiais, na minha mente. Hoje, não coloco o anel todas as manhãs, antes carrego as memórias da minha avó todos os dias.
Maria Inês Pinto, Editora Online
Quando penso em peças especiais, há imediatamente duas que não poderia deixar de mencionar. Em miúda era conhecida como vaidosa e pirosa (não posso negar) e tinha um amor incondicional às minhas peças de roupa e acessórios favoritos, a tal ponto que, ainda hoje, passados tantos anos, guardo boa partes delas. Lembro-me perfeitamente das socas que usava o verão inteiro, ou das espadrilles com uma pequena cunha (que na altura me parecia gigantesca) que atava à perna e me faziam sentir super adulta. Recordo-me das sandálias azuis que calçava até para dormir a sesta, tal era o amor que lhes tinha. Mas nada supera o meu colete de ganga clara com fitas fluorescentes e brilhantes no peito. Devia andar no sexto ano e estava numa festa de aniversário no cinema. Quando íamos a sair do shopping, avistei, ao longe, um colete que continha absolutamente tudo o que eu adorava - no fundo, cores neon e muitos (demasiados) brilhantes. A loja já estava fechada, mas não descansei enquanto não voltei e levei um daqueles exemplares para casa. Não me recordo se o cheguei a usar assim tanto - acho que tinha alguma vergonha, na verdade. As minhas amigas usavam roupas muito mais “normais”. Ainda hoje tenho este colete; está guardado numa caixa juntamente com outras peças igualmente pirosas que tanto estimo. Já a minha t-shirt da Barbie, não faço ideia onde poderá estar. Talvez tenha acabado no lixo, para minha infelicidade: quando tinha sete anos, creio, estava em casa, no escritório (onde passava a maior parte dos meus dias a colar autocolantes e a desenhar bonecas e roupas), quando tropecei num par de sandálias que tinha espalhadas, e fui contra a quina de um móvel enorme. Tal foi a pancada que parti a cabeça e fiquei a jorrar sangue, deixando toda a minha família em pânico. Recordo-me de ver o desespero nos seus olhos e, minutos depois, estava já no banco da frente do carro, ao colo da minha mãe. Nesse ponto já tinha aceite o meu fatídico destino: se parti a cabeça e estava a deitar sangue, então era lógico que ia morrer. Lembro-me de, com muita calma (porém em lágrimas), dizer à minha mãe: “Mãe, eu sei que vou morrer. Eu sei. Mas, por favor, lava esta t-shirt da Barbie. Está cheia de sangue e é a minha preferida.” Não morri. Levei meia dúzia de pontos na cabeça e fui para casa. Hoje em dia tenho uma cicatriz mas, para minha sorte, fica exatamente em cima do risco do cabelo. Já as sandálias… nunca mais as deixei espalhadas, e hoje é a primeira coisa que arrumo quando chego a casa. Nunca mais parti a cabeça (o meu irmão mais velho salvou-me da segunda queda) e nunca mais tive uma t-shirt da Barbie, mas continuo a usar (e a adorar perdidamente) socas, espadrilles e coletes - agora sem fitinhas neon -, e continuo a guardar as minhas peças favoritas mesmo quando deixam de servir. Já não uso dezenas de pulseiras ao ponto de não conseguir dobrar os braços, mas ainda sou obcecada por acessórios. Passaram mais de quinze anos, mas não mudei assim tanto, afinal.
Ana Murcho, Chefe de Redação
A minha relação com a roupa sempre foi avassaladora. Na maior parte das vezes, porque romantizei pares de sapatos que não tive (já aqui escrevi sobre os Mary Jane de veludo da minha colega Cláudia que quase me destruíram a infância), vestidos com mangas de balão que nunca entraram no meu guarda-roupa e casaquinhos de aspeto fofo que não aparecem nas fotografias em que eu apareço. Em criança, eu e os trapos éramos semi-inimigos, travávamos uma batalha invisível que só começou a ver bandeiras brancas quando assumi que me importava, que apesar do meu cabelo sinistro também queria tentar ser bonita e que por isso era importante fazer parte do processo que dava acesso ao meu armário: as compras. Entre a Cenoura, primeiro, e a Benetton, depois, lembro-me de várias t-shirts que ainda hoje animam as gavetas do meu quarto, na casa dos meus pais — sempre adorei t-shirts, quanto maiores, melhor. Lembro-me de umas saias às riscas, com a cintura com flores, de um verão especialmente quente. Lembro-me dos calções de ganga que usei, quase todos os dias, na viagem de carro que fizemos pelo sul de Espanha e França. Lembro-me das minhas primeiras Levi’s e dos meus primeiros All Star. Agora que penso nisso, as minhas primeiras Levi’s devem ter sido a peça mais especial de todas, principalmente pelo que simbolizavam naquela fase da minha vida — a entrada na adolescência, o carimbo de pertença a um mundo “cool” onde os meus primos já passeavam, o entendimento das coisas “fixes”, fosse lá isso o que fosse. Devo ter comprado centenas de calças de ganga entretanto, porque se há coisa que uma apaixonada por moda acredita é que o par de jeans perfeito está sempre no próximo provador, mas poucas peças me fazem tão feliz como encontrar umas Levi’s que me assentam bem. Ironia do destino, estou neste momento à espera que o correio me entregue umas.
Publicado originalmente no The Memories Issue, de abril 2024. Mais conteúdo na edição em print.
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