Renata Litvinova em Balenciaga
A felicidade também está na Cultura, principalmente aquela que nos preenche: e “Monstre Sacré” é um desses exemplos em diversos sentidos. Renata Litvinova é a argumentista e protagonista desta peça de teatro e veste figurinos assinados por Demna Gvasalia. Em cena entre março e maio no Théâtre Hébertot, em Paris, falámos com a autora sobre este “Monstro Sagrado”.
Renata Litvinova é uma das vozes mais enigmáticas e fascinantes do cinema e do teatro contemporâneo. Atriz, realizadora e argumentista, a artista russa construiu uma carreira marcada por uma estética única e personagens imortalizadas pelo seu carisma e intensidade. Em Monstre Sacré, a sua mais recente peça apresentada em Paris, Litvinova mergulha na obsessão pela Arte, na luta contra o tempo e na eterna reinvenção do artista. Em conversa com a Vogue Portugal, a artista - que é também protagonista deste editorial de Moda - revela os bastidores da criação desta obra que promete arrebatar Paris.
Escreveu, realizou e protagonizou Monstre Sacré. Como foi o processo criativo?
Esta já é a minha segunda peça em Paris. Para ser honesta, os processos criativos são sempre semelhantes - são alegres, nervosos, dramáticos, cheios de esperanças, ilusões, noites sem dormir e, claro, envolvem muito trabalho. Mas, acima de tudo, é um trabalho comigo mesma, pois desempenho três papéis - autora, realizadora e atriz. No entanto, a minha equipa ajuda-me imenso. Trabalho com muitos deles há vários anos, como, por exemplo, com a brilhante compositora Zemfira e o excecional génio Demna, que desenha os meus figurinos. Com ele, já realizei tanto filmes como peças de teatro.
A peça presta homenagem a Sunset Boulevard e ao mito da estrela esquecida. O que retirou desse filme e como o transformou em algo único e pessoal?
Sou há muito tempo uma fã devota dos filmes de Billy Wilder e Ernst Lubitsch. Cativam-me pelo grande estilo de Hollywood, que combina comédia, noir, mistério, crime e amor. Claro que esta é uma homenagem aos meus realizadores favoritos e à admiração por aquelas estrelas da Era Dourada do cinema que participaram nos seus filmes - Marlene Dietrich, Greta Garbo, Bette Davis, Barbara Stanwyck e, claro, Marilyn Monroe. Talvez eu tenha trazido mais loucura – nunca me parece suficiente. Trouxe uma obsessão pela profissão e a necessidade de novos papéis e de um novo amor. Trouxe os meus heróis, inspirados pela construção impecável que Wilder e Lubitsch criaram, não só como realizadores, mas também como argumentistas - tal como eu.


Há um certo ar de exílio na história: o exílio da indústria, da juventude, do próprio passado. Por que motivo foi Paris o cenário perfeito para este retiro da personagem?
Não há lugares ideais. Fugimos, mas tudo continua dentro de nós. E Paris é bela no seu caos criativo - toda a gente corre para lá em busca de liberdade e amor. Não concorda? E, pelo contrário, a peça está impregnada com algo que nunca pode ser expulso da criatividade - os heróis não param de escrever o seu "grande filme", filmam-se a si próprios, constroem cenários no seu palácio. Em suma, a casa onde vivem é um verdadeiro estúdio de cinema, onde as filmagens e ensaios nunca cessam - está a ser criado um tipo de arquivo, uma criatividade "na gaveta" - isto é arte pura! E, além disso, na minha peça anterior, Cactus, tivemos lotação esgotada em Paris - o meu público vive aqui.
A personagem que interpreta é uma estrela de cinema, uma espiã e, possivelmente, uma assassina. O que a torna fascinante para si? Ela é um reflexo do próprio cinema, das suas ilusões, reinvenções e perigos?
Antes de mais, é sempre mais interessante interpretar vilões, mas ela não é uma vilã. É uma atriz obcecada pelos papéis que nunca chegou a interpretar. O propósito da sua vida é servir a sua Musa do Cinema. Ela transformou até a sua casa num estúdio de filmagem, onde constantemente grava e realiza audições para o guião que tem vindo a escrever incansavelmente ao longo da última década.
O que significa para si hoje, como artista, mulher e contadora de histórias, o conceito de "urgência", um dos temas centrais da peça?
O tempo parou para a minha heroína - ela vive no seu próprio conto de fadas, preparando-se para um novo projeto inexistente que ocupará toda a sua vida.


Descreveu Monstre Sacré como uma mistura de thriller e tragicomédia, a história de uma estrela de cinema que se agarra a um futuro impossível. Vê isto como uma metáfora da eterna luta do artista contra o tempo?
Poucos estão preparados para o envelhecimento - ainda mais para um envelhecimento belo -, especialmente as atrizes, pois, depois dos 50 anos, a oferta de papéis principais diminui drasticamente. E começa esta perseguição incessante à juventude, aos papéis de "starlet" - tão comovente como em O Pomar das Cerejeiras, de Tchekhov: "tudo no mundo chega ao fim". Aceitar esse fim ou lutar contra ele - um dia, todos teremos de enfrentá-lo.
Esta obra é também uma rebelião contra a obsessão da sociedade pela juventude?
"Estás a envelhecer, já não tens 25 anos..." Esta é uma crítica de um jovem herói que diz à minha personagem que já não há papéis para ela aos 50. Mas ele está enganado - é ele quem a está a usar e manipular, apesar de ainda ser um jovem autor de filmes nunca realizados aos 40 anos.



Demna Gvasalia desenhou os figurinos para Monstre Sacré. Como foi o processo de colaboração?
O Demna é um génio intemporal. Ele revolucionou o mundo da Moda, cancelou tudo o que era tendência na altura e, hoje, tornou-se um grande clássico da Moda – todos o citam, seguem e se inspiram nele. Eu também. Houve outros génios na minha vida, mas são poucos – Zemfira, Kira Muratova, Alexey Balabanov e Demna. O papel dessas pessoas é inestimável - são omnipresentes. E, claro, não posso deixar de referir a nossa compositora - a grande estrela Zemfira Ramazanova - trabalhamos juntas há 20 anos e fizemos muitos filmes e peças de teatro. Ela deixou a Rússia com o início da operação militar especial, agora vive e trabalha em Paris. Considero-a uma música brilhante, que enche os auditórios dos seus concertos. E o seu trabalho no cinema e no teatro é uma parte da magia que me ajuda tanto a mim e aos meus espectadores.
Na Moda, há pessoas como Demna, mas são raras – transformam a Moda em arte. Cada desfile do Demna é uma declaração e um conceito. Foi um dos primeiros a trazer para a passerelle heróis e personagens esquecidos, antigos ídolos de artistas conceptuais - com um amor e respeito extraordinários. A Moda de Demna sempre me tocou e inspirou. Há algum tempo, comecei a ver todas as minhas heroínas com os seus olhos e vestidas com as suas criações.
Esta é a nossa segunda atuação em França, em Paris, com Demna, onde ele criou todos os figurinos para as minhas heroínas. Antes disso, fizemos juntos o filme Northern Wind , onde ele costurou um vestido com uma cauda de 20 metros especialmente para a minha heroína - é exatamente o número de anos que a minha personagem espera pelo seu amante. E agora temos este novo projeto sobre uma estrela de cinema envelhecida, em que os fatos não se repetirão em todas as atuações. Será como uma continuação, e não uma repetição da mesma ação. Tudo será novo, como se fosse a primeira vez.


Após a última cena, o que espera que permaneça com o público?
O objetivo de qualquer arte é catarse. E o meu também. Quero que o espectador saia renovado e purificado. E, ainda assim, feliz e cheio de esperança.
Por fim, considerando que a personagem sonha em permanecer grandiosa e eternamente relevante, perguntamos: existe uma chave para a imortalidade artística?
A minha heroína é imortalizada pelo cinema - pelo grande filme no qual uma vez atuou. Nele, nunca envelhecerá nem morrerá. A vida segue leis diferentes, que para a minha heroína são completamente irrelevantes. Ela é como uma personagem de um conto de fadas, ou melhor, de um filme.




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