“Viagem” é uma palavra mágica que desperta os melhores sonhos. Mas uma viagem com estilo é um sonho que os tempos se encarregam de mudar. Na época dos low cost, é possível ser tão chique como na era dos transatlânticos?
“Viagem” é uma palavra mágica que desperta os melhores sonhos. Mas uma viagem com estilo é um sonho que os tempos se encarregam de mudar. Na época dos low cost, é possível ser tão chique como na era dos transatlânticos?
Comecemos pela conclusão: sim, é possível. Ser chique, ter um gosto refinado, é atemporal. E, agora, vamos às premissas: o conceito de chiqueza muda constantemente. Antigamente (já lá vamos ao que quer dizer “antigamente”), o objetivo era a elegância. Hoje, o desejo está mais no conforto. E há razões para a mudança. Viajava-se de navio, em transatlânticos faraónicos, como o Queen Mary, o Ile de France ou o Andrea Doria, que nada têm a ver com os barcos de cruzeiro de massas onde milhares de pessoas se empacotam numa aparência de luxo pronto-a-servir. David Bowie, imprescindível quando se fala de estilo, tinha medo de voar e ia aos Estados Unidos sempre de transatlântico. Essas maravilhas dos sete mares, opulentas e caríssimas, foram envelhecendo, como as figuras superlativas que nelas viajavam, com as suas malas de porão pejadas de toilettes para os jantares, bailes de gala e passeios nos decks ao luar.
A época dos transatlânticos começou (tragicamente) com o Titanic, em 1912, e terminou discretamente na década de 1980, quando os últimos foram convertidos em museus ancorados ou levados para a sucata — sendo o mobiliário e apetrechos, feitos por artesãos, vendidos em leilão. Essa é uma parte do “antigamente”, quando 100 quilos de bagagem não constituíam qualquer problema. A outra parte, que vem até ao fim do século XX, mais ou menos, foi quando viajar de avião também significava luxo. A bagagem era mais leve — tipicamente, duas malas de porão, um nécessaire e uma pasta na cabine — e não havia bailes, mas as refeições eram em loiça de porcelana, as mantas de caxemira e o pessoal de bordo saído das páginas da Vogue e treinado na Suíça. Nos voos longos, dormia-se em cadeiras que se deitavam como camas e ia-se aos lavabos antes de aterrar, para mudar de roupa e compor a maquilhagem. Os homens usavam casaco e gravata, as senhoras mais ousadas permitiam-se um palazzo pijama. Os aeroportos, esparsos de gente, tinham confortáveis sofás para os viajantes e para quem os esperava; havia listas de passageiros para consulta e os aviões chegavam com grandes intervalos, altura em que havia alguma agitação, muitos abraços e beijos de quem não se via há muito tempo.
Ao aeroporto de Lisboa, desenhado por Keil do Amaral, com um baixo relevo alado sobre o portal, chegava uma dúzia de aviões por dia. Tinha uma varanda sobre a pista, com serviço de bar, para as famílias mostrarem aos filhos a maravilha do Super Constelation a aterrar. Como em todos os aeroportos, havia bagageiros equipados com um enorme carrinho onde empilhavam as malas dos viajantes que, evidentemente, tinham de aparecer leves e elegantes, sem puxar ou carregar mais do que a tal pasta e o nécessaire. Para darmos uma data para o fim desta parte do “antigamente”, podemos escolher o último voo do Concorde, em 2003. O conceito de voar o mais depressa possível e com o maior conforto, que orientou a construção de vinte Concorde, tinha um custo: a viagem de Londres a Nova Iorque, ida e volta, custava 8.800 euros (a preços atuais).
"Ficar confortável, ou “à vontade”, era o oposto de estar apresentável."
Em termos mais gerais, ou seja, da elegância em todas as ocasiões, é recente a ideia do conforto como fator determinante. Não é preciso recuar até ao final do século XIX, quando as mulheres sufocavam em espartilhos para uma cintura de vespa; o conforto entrou no vocabulário do chique numa época imprecisa, mas certamente próxima. Chanel inventou um novo estilo de mulher, sem dúvida mais confortável, mas a intenção ainda não era essa. Pelo contrário, dizia-se que ficar confortável, ou “à vontade”, era o oposto de estar apresentável. Só as classes menos finas alargavam o nó da gravata (eles) ou descalçavam os sapatos (elas) quando chegavam a casa. Só as ainda menos finas jantavam sem as mesmas roupas com que saiam à rua. “Pôr-se à vontade” era, para quem se preocupava com o estilo, recolher ao quarto. (E, mesmo aí, convinha elegância. Mas isso é outra história...) Isto aplicava-se ao dia a dia, em que as pessoas circulavam em ambientes familiares; mesmo assim, havia um esforço acrescido de se aperaltar para viajar, uma atividade rara e, obviamente, especial.
Ora bem, aconteceram duas coisas com as viagens. Primeiro, ficaram corriqueiras. Graças à chamada “desregulamentação” das empresas aéreas e aos voos low cost, qualquer pessoa com meios relativamente modestos pode viajar frequentemente e os compromissos profissionais incluem amiúde ir e vir todos os meses, quando não semanalmente. A compartimentação das férias de trinta dias em quatro períodos de uma semana permite viajar mais vezes por ano e o turismo barato, tipo hostel, alivia as finanças. Segundo, tornaram-se desconfortáveis. Os aeroportos são um formigueiro de gente, o espaço da cadeira no avião está mais próximo dos vasos das múmias peruanas. Os lavabos são poucos para as centenas que cabem num avião desenhado não para ser rápido e confortável, mas para levar o maior número de pessoas possível. Com exceção das companhias de aviação que fazem do luxo a sua bandeira, os operadores aéreos não se preocupam com as pernas e a paciência do viajante. Estar em Paris, Nova Iorque, ou qualquer outro destino desejado pode ser um sonho, mas ir e vir tornou-se num pesadelo. Nestas circunstâncias, o conforto tornou-se num objetivo imprescindível. Toda a gente, ricos e pobres, magros e gordos, fashionistas ou desmazelados, tem de viajar o mais confortavelmente possível.
Aqui, entra a questão do bom e do mau gosto. Ou, para a colocar de outra maneira: o que é o gosto. Uma coisa que aprendemos, ao viajar — quer seja com os joelhos no queixo, como agora, ou com água de colónia e écharpes flutuantes, como antigamente — é aceitar valores estéticos diferentes dos nossos. Ou seja, a sermos menos paroquiais, provincianos. Há estilos e há estilos, e o bom e o mau gosto são conceitos relativos. Pode viajar-se com roupa confortável e manter o estilo. Não é verdade — e gostaria de sublinhar isto em letras gordas — que haja um gosto de referência. Os americanos casam de smoking branco. As “tias” usam écharpes Hermés lançadas sobre o pescoço. Certos homens calçam mocassins com uma tira de seda tricolor, sem meias. Outros usam Doc Martens. As indianas e as minhotas adoram muito ouro. As nórdicas só usam tons pastel e saem à noite vestidas como se fossem para o escritório. O que é “bom gosto” e “mau gosto”? Estilo não é estar de acordo com nenhum padrão lá da terra onde nascemos. Estilo não é gosto, bom ou mau. Estilo é descobrir e usar naturalmente aquilo que nos fica bem. Estilo é estar confortável e agradável à vista dos outros. Estilo é difícil de definir, mas fácil de perceber.
Voltemos às viagens, o universo deste artigo. Faça uma experiência: vá ao aeroporto e fique à frente das chegadas a ver a arca de Noé que desfila continuamente por aquela porta. Hoje em dia, 99% das pessoas que viajam fazem-no com o conforto em vista. Para não esperarem pela bagagem, preferem aquelas malas de cabine com rodas que fazem um barulho irritante na calçada portuguesa (mas isso é outro assunto). No entanto, estando confortáveis, e com poucas opções de roupa, há algumas que têm muito estilo. Não será o estilo cá da terra, mas considerar que o estilo cá da terra é a única referência é uma prova de provincianismo. É o estilo das terras deles, que, se o tiverem, é um estilo universal. Um chique, digamos assim. Está no que vestem, mas também na forma como o vestem. O bom gosto não é um padrão. O bom gosto é tirar o máximo proveito da aparência que temos, dentro dos padrões estéticos da nossa cultura. Uma mulher que viaja com umas calças confortáveis mas interessantes, com uns ténis macios mas despretensiosos, o cabelo bem cortado mas sem maquilhagem, e se move suavemente na situação áspera de viajar numa lata de sardinhas, tem estilo. Ao contrário de outra que escolheu uma saia própria para sair à noite, uns sapatos desapropriadamente sexy para a situação e uma maquilhagem de passerelle. Não há uma referência de comparação, mas há um gosto que vem da atitude e da estética, seja qual for a referência. O conforto passou a ser uma postura, não uma desculpa para o desleixo.
Também há o contrário, evidentemente. As pessoas que confundem conforto com desmazelo. Que não percebem que o seu porte não permite certas concessões ao conforto. Numa palavra: não têm estilo. O estilo, qualquer estilo, tem de ser procurado, cultivado, levado a sério. E usado displicentemente.O estilo de viajar mudou. Mas viajar com estilo continua igual. Ou seja, o bom gosto, seja qual for a situação, é universal, eterno e resiste a todos as tentações. Uma postura divina, podemos dizer.
Artigo originalmente publicado na edição de agosto de 2019 da Vogue Portugal.