Entrevistas  

O laço no topo do bolo

01 Apr 2024
By Pedro Vasconcelos

The Blossom Issue | Fotografia de William Waterworth

Catorze anos após a sua estreia na indústria, Simone Rocha continua a reinventar-se. No curto espaço de um ano, a designer estreou-se como curadora, introduziu a linha masculina da sua marca e colaborou com Jean Paul Gaultier para a sua primeira coleção de Alta-Costura. Em entrevista à Vogue Portugal, Rocha reflete sobre a feminilidade, o seu trajeto e como mantém a sua criatividade em constante florescimento.

“A minha visão sempre fez parte de quem eu sou." Simone Rocha debate-se sobre a linguagem visual que lhe é tão natural. "Sempre pensei na Moda como um equilíbrio sensível mantido pela emoção." A profunda introspeção da designer é aparente nas suas coleções. Algures entre o místico e o etéreo, as suas criações são complexas representações de feminilidade.

Foi através da estética, que substitui a doçura do superficial pela vulnerabilidade do delicado, que Rocha conquistou o seu lugar na indústria. A sua linguagem, não só idiossincrática como adaptável, foi traduzida inúmeras vezes. Das suas colaborações com marcas de high street até à sua recente coleção de Alta-Costura com Jean Paul Gaultier, a designer é um dos nomes mais importantes da Moda britânica. Conhecida pelos seus laços e transparências delicadas, as peças Rocha são alvo de incansáveis recriações. Basta uma rápida passagem por qualquer rede social para perceber o impacto da sua obra. No Instagram e no TikTok, a sua influência é sentida na enjoativamente popular tendência #coquette que, nas duas plataformas, foi usada mais de três milhões de vezes até à data. A palavra, que origina do termo francês para uma pick me ancestral (leia-se, uma mulher que vive da atenção masculina), é agora utilizada para descrever uma estética delicadamente feminina. Mas, muito antes do insulto virar adjetivo para qualquer look com fitas cor-de-rosa, já Rocha colocava laços em sítios inesperados. Quando a irlandesa iniciou a sua trajetória, a indústria da Moda era um campo diferente. Ainda que hoje em dia as suas peças sejam alvo de admiração online, em 2010, o ano da sua primeira coleção, a "viralidade" de uma coleção ou de um desfile não era um atalho para o sucesso.

Filha do designer John Rocha, Simone decidiu seguir os passos do pai. Ainda que a conversa de nepotismo seja aterradora para a maioria, a designer não se deixa embaraçar por tais trivialidades.

"Cresci a ir ao seu estúdio, não há forma de que isso não tenha inspirado a minha trajetória." Rocha admite que não foi apenas inspiração pueril, a presença do pai na sua linguagem visual é algo que honra sazonalmente. "Estou sempre a ser inspirada pelo seu trabalho... pelo seu legado." De uma infância passada a pairar no estúdio do pai, Rocha saiu do ninho para estudar na prestigiosa Central Saint Martins, em Londres. A universidade, famosa por produzir nomes como John Galliano ou Alexander McQueen, deu-lhe a primeira grande oportunidade - como parte do mestrado, Rocha produziu uma coleção sobre a tutela de Louise Wilson, professora responsável pela criação dos maiores nomes da Moda britânica. As suas peças, ainda que basicamente ausentes dos registos da apresentação, chamaram a atenção de olhos entendidos. Após o desfile, Lulu Kennedy, fundadora da Fashion East, uma iniciativa que apoia talento emergente, contactou-a para lazer parte do seu programa. O resto é história. Colaborações com H&M e Topp-shop, várias lojas espalhadas pelo mundo, coleções consecutivamente bem-sucedidas — a sua carreira tem sido uma trajetória ascendente desde a sua graduação.

Mas, ao longo dos seus catorze anos de carreira, uma pergunta permanece: como é que Rocha mantém o seu fôlego criativo? "O segredo para preservar a criatividade é mantermo-nos fora da nossa zona de conforto." A designer justifica a sua resposta nas experiências profissionais dos últimos 365 dias.

"Os projetos em que tive a sorte de participar neste último ano foram extremamente emocionantes. Desde a oportunidade que tive de criar Alta-Costura pela primeira vez à oportunidade de expor no museu MoMu, em Antuérpia." É esse o fio condutor da sua carreira, a certeza com a qual toma cada passo baseia-se na sua paixão. "A minha criatividade é alimentada pelo entusiasmo." A euforia à qual alude não é apenas relativa à sua trajetória profissional, faz parte da filosofia do seu design. Rocha começa cada coleção a partir de uma narrativa. "Os meus desfiles são sempre inspirados em alguma coisa. Quer seja uma tradição, fábula, período histórico, o meu país ou até mesmo a minha família." Rocha conta as histórias que conhece. "Ao crescer na Irlanda, o folclore encontrava-se um pouco por todo o lado à minha volta." É a partir desta cultura popular que a sua reconhecível estética nasce. O seu uso de folclore não é superficial. Não é uma desculpa temática para absolver a falta de direção criativa ou vender uma coleção. É um ponto de vista que a designer partilha através da Moda. Rocha adiciona que os seus pontos de referência são pequenas homenagens, expressões das saudades que sente da pátria. "E a ouvir o som das ondas da Irlanda que me sinto em casa, quando me mudei para Londres senti-me afastada desse mundo. A pesquisa que faço para cada coleção é uma forma de me manter conectada."

Ao explorar o folclore irlandês, Rocha aprofunda a complexidade da sua estética. A sua feminilidade não é fútil, superficial e muito menos explorativa. Pelo contrário, a vulnerabilidade das suas peças é ancorada na sua cultura. Ainda que o recurso ao folclore irlandês seja por vezes subtil, é omnipresente nas suas coleções - as últimas três foram pensadas como um tríptico que "explora a Moda que e preservada através de cerimónias." Esta tríade iniciou-se com a coleção primavera/verão 2024, intitulada de "The Dress Rehearsal” (O Ensaio Geral). Nesta, Rocha subverteu o ritual do casamento por se focar no momento que o antecede: o ensaio. O bouquet nupcial foi adulterado, posicionado por detrás de vestidos transparentes. O bolo de casamento tornou-se incomestível, deliciosamente repleto de folhos, laços e bordados florais.

Seguiu-se "The Procession" (A Procissão). A coleção marcou não só a segunda parte do tríptico, mas a primeira coleção de Alta-Costura produzida por Rocha, feita em colaboração com Jean Paul Gaultier. Desde 2021 que o icónico designer francês convida diferentes nomes da indústria da Moda a trabalhar consigo e com o seu atelier para produzir uma coleção filha de casamentos improváveis. Simone Rocha é a sexta convidada. A dramática feminilidade da designer irlandesa colidiu com a sensualidade intimidante de Gaultier. Ainda que Rocha tenha admitido no passado que não gosta de se inspirar em outros designers, sentindo que é difícil resistir à tentação da cópia, constata também que esta experiência é uma exceção à sua regra. “Este caso é diferente. Queria prestar homenagem aos símbolos e códigos de Gaultier" É, afinal de contas, este o desafio proposto pelo lendário criador. "Foi mágico poder observar os seus arquivos e integrá-los no meu mundo." Rocha não se deixou intimidar pelo espólio histórico do designer francês. Pegou o "touro pelos cornos , ou melhor, o soutien pelos cones, e reinterpretou quatro dos códigos mais icónicos da marca - espartilhos, referências náuticas, padrões de tatuagens e o cone bra. As clássicas riscas tornaram-se fluidas e, como por magia, estenderam-se para lá dos limites de um top transparente, enlaçando-se nas extremidades.

Panniers exagerados são visíveis debaixo de tules delicados. O célebre cone bra é subvertido, deixando de ser o destaque em vestidos rouched do decote à bainha. O prazer que Rocha tirou da realização desta coleção é óbvio. Peças como um top composto inteiramente de pétalas metálicas ilustram o óbvio deleite que a designer irlandesa teve em trabalhar com o atelier de Gaultier. "A Alta-Costura tem uma liberdade de criação e uma atenção ao detalhe idiossincrática que me inspirou." Rocha suavizou a estética de Gaultier, conduzindo uma procissão solene em honra do seu legado. Jean Paul Gaultier e John Rocha foram apenas dois na multidão que se ergueu para aplaudir a coleção de pé.

"Acho que [trabalhar em Alta-Costura] me ajudou a ser mais sensível com o corpo, estou mais recetiva à figura feminina e à identidade de cada peça que crio." A designer confessa que os dias (e noites) que passou no atelier de Gaultier alteraram a sua filosofia profissional. Habituada à rapidez do pronto-a-vestir, Rocha teve a oportunidade de pensar em cada peça de forma cuidada. Esta sensibilidade acrescida é percetível na sua coleção outono/inverno 2024, o fim do seu tríptico. "The Wake" (O Velório) baseia-se no período de luto de 40 anos da Rainha Vitória. A inspiração monárquica é clara ainda que a paleta de cores seja escura. Numa coleção dedicada à cerimónia fúnebre, as transparências têm uma aura melancólica, como que expondo a pele à mágoa. Os tão populares laços assumem proporções gigantescas (boa sorte para tentar replicá-los em casa). Não foi apenas a sua filosofia de trabalho que mudou após a colaboração com Jean Paul Gaultier, os espartilhos voltaram a aparecer na coleção da sua marca homónima. Um facto pouco surpreendente visto que Rocha confessou pesquisar para as três coleções do seu tríptico em simultâneo. Agora que esta tríade terminou, o que podemos esperar do futuro? Rocha não revela a sua próxima jogada, escolhendo manter os seus trunfos escondidos. Mas não é preciso que nos diga muito. Ao observar os últimos catorze anos é óbvio - a evolução de Rocha é inevitável. Ao longo da sua carreira não foi só a sua linguagem estética que evoluiu, ela própria cresceu enquanto pessoa. "Acho que acontecimentos como ter as minhas filhas mudaram a minha perspetiva, não só sobre feminilidade, como sobre o tempo." Mesmo numa indústria infame pelo risco de burnout, não temos de nos preocupar com a criatividade da designer. Afinal, quem corre por gosto não cansa.

"O meu maior desejo é poder continuar a fazer roupa bonita, que desperte emoções." A flor da criatividade está segura entre os soberbos folhos e os elaborados laços de Simone Rocha.

Originalmente publicado no The Blossom Issue, disponível aqui

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