Opinião  

O problema não és tu, é a tua mãe

24 May 2024
By Pureza Fleming

Ilustração de Esther Sarto

Embora menos conhecida que a sua homónima, “daddy issues”, a expressão “mommy issues” destaca os desafios emocionais e psicológicos que surgem de relacionamentos complicados com a mãe durante a infância e adolescência. Questões como negligência emocional, superproteção e falta de limites podem ter um impacto significativo na idade adulta. Reconhecer e enfrentar estes “issues” é crucial para promover relacionamentos saudáveis e até uma vida mais equilibrada.

"O problema não és tu, sou eu”, é capaz de ser uma das mais declamadas sentenças do vocabulário das relações — ou melhor, do momento em que estas se rompem. É uma forma menos abrupta de se terminar um relacionamento com alguém, sem dúvida, mas apesar das boas intenções o “problema” pode ter muitas origens. Para começar, somos seres humanos e, como tal, imperfeitos, cheios de manias, issues e personalidades múltiplas. Depois, entram em cena os issues alheios, como são aqueles que herdamos dos nossos mais longínquos antepassados ou, quem sabe, sem querer, dos nossos pais. No caso, os famosos “daddy issues” e os não tão conhecidos “mommy issues.” Tradicionalmente, associava-se o papel do pai à autoridade do chefe da família, cuja função principal seria assegurar o sustento da mesma; já às mães, cabia o cuidado da casa, dos filhos, do afeto. Não é, pois, de estranhar que as relações pai-filhos tenham vindo a ser culturalmente mais analisadas e discutidas em termos psicológicos. Consequentemente, a ideia de “daddy issues” tornou-se mais difundida. Fala-se mais e há mais relatos da existência de pais ausentes ou negligentes na infância e/ou adolescência. “Assim como o termo ‘daddy issues’ (questões paternas), se refere a problemas semelhantes associados à figura paterna, ‘mommy issues’ (questões maternas) sugere que as relações com a mãe podem influenciar significativamente o desenvolvimento emocional e os padrões de relacionamento de uma pessoa, na vida adulta. Ambos são simplesmente o resultado de um apego inseguro com os nossos cuidadores principais, os pais”, clarifica Ângela Rodrigues, Psicoterapeuta na Clínica da Mente. Facto a reter: não somente os homens padecem de mommy issues. Assegura-me aquela terapeuta que a “questão” é transversal aos géneros. “Mommy issues e daddy issues são termos usados para descrever questões emocionais e psicológicas que surgem a partir de relacionamentos complicados ou traumáticos com os pais. Enquanto os mommy issues se referem a problemas derivados da relação com a mãe, os daddy issues referem-se a dificuldades decorrentes da relação com o pai. É importante ressaltar que tanto os mommy issues quanto os daddy issues podem afetar homens e mulheres de forma diferente, dependendo da dinâmica familiar e dos traumas vivenciados”, remata.

A expressão mommy issues tem sido assim frequentemente utilizada para apontar problemas pessoais e emocionais que uma pessoa pode ter como resultado de um relacionamento tenso ou complicado com a mãe durante a infância e/ou a adolescência. “Nomeadamente, negligência emocional, abuso físico ou emocional, inexistência de limites adequados, superproteção, falta de apoio emocional, entre outros. Estes problemas podem representar um enorme impacto na vida adulta, incluindo nos relacionamentos, na saúde mental e na autoestima”, soma aquela psicoterapeuta. Ângela Rodrigues sublinha a importância do papel da mãe no desenvolvimento de cada pessoa e o significativo impacto que esta representa em várias áreas da vida. Segundo relata, a relação entre mãe e filhos é crucial no que respeita a aspetos emocionais, cognitivos e sociais do desenvolvimento. “A formação de um vínculo emocional seguro entre a mãe e o bebé é fundamental nos primeiros anos de vida. Este vínculo afetivo contribui para o desenvolvimento da confiança e da segurança emocional da criança, e é por isso que problemas como a depressão pós-parto e a saúde mental na maternidade precisam de ser levados a sério. Além disso, o modo como ela responde às necessidades emocionais da criança influencia a capacidade da criança de regular emoções, desenvolver empatia e estabelecer relacionamentos saudáveis”, mantém. As características de alguém com mommy issues são muitas e incluem: questões de sentimento de culpa e fracasso constante (por não se ser bom/a o suficiente para a sua mãe ou sentir como se tivesse fracassado em relação a ela de alguma forma); apego excessivo a outras pessoas, especialmente a parceiros/as; stress constante; dificuldade em estabelecer limites; sintomas de ansiedade e depressão; busca de aprovação permanente; dificuldade em expressar emoções; e a fatídica autossabotagem, ou seja, envolver-se em comportamentos autodestrutivos na procura de validar as crenças negativas sobre si. Quando não reconhecidos e/ou trabalhados em terapia, estes traços não tardam a manifestar-se na forma de gatilhos. Numa relação a dois, os mommy issues podem representar grandes desdobramentos. Da dependência emocional passando pelos sentimentos de insegurança e ciúmes, sem esquecer a dificuldade em estabelecer limites, e até mesmo os comportamentos destrutivos, o inferno é o limite. Ângela Rodrigues corroba esta ideia: “Estas pessoas [com mommy issues] podem ter dificuldade em estabelecer relações saudáveis e duradouras, podem sentir-se inseguras e carentes, e ainda ter problemas de confiança e de autoestima. Este quadro pode afetar severamente a dinâmica do casal. É importante que ambos estejam cientes dos desafios que podem surgir devido aos mommy issues e que procurem ajuda profissional.”

Habituámo-nos a ouvir falar mais em daddy issues, também devido às teorias freudianas. Tanto o pai da psicanálise como o seu seguidor, o suíço Carl Jung, doutrinaram o mundo acerca da influência da figura materna e paterna na formação da personalidade e no desenvolvimento psicológico. Ambos destacaram a importância de resolver as questões relacionadas com os pais de maneira a promover um desenvolvimento saudável e uma integração equilibrada da psique. O psicanalista britânico John Bowlby (1907-1990), por seu turno, desenvolveu aquela que viria a ser conhecida como a Teoria do Apego. Segundo Bowlby, o apego é inato ao ser humano. Aproximamo-nos das pessoas de uma maneira instintiva para criar vínculos que possam ser úteis tanto para nós como para os demais. Os bebés, sobretudo, procuram estes vínculos para sobreviver. A Teoria do Apego chegou a ser considerada uma versão do behaviorismo (psicologia comportamental). Porém, o psicanalista acreditava que esta confusão era feita por conta da noção de apego e de comportamento de apego. Para ele, o apego nada mais é do que um vínculo que transmite uma sensação de segurança. O bebé associa o seu conforto e proteção à figura de outro indivíduo. No caso, a mãe ou quem toma conta dele. Após a Segunda Guerra Mundial, John Bowlby manteve contacto direto com um grupo de crianças órfãs e foi lá que procurou compreender como é que o relacionamento entre pais e filhos (principalmente entre mãe e filho) era construído, bem como qual era a sua importância para o desenvolvimento saudável do ser humano. A invenção do termo mommy issues enfim chegaria, nem que fosse apenas para confirmar as ideias daquele psicanalista britânico. Numa ode à sua mãe, Maya Angelou, uma das mais destacadas vozes das artes e das letras norte-americanas e autora de Mom & Me & Mom (2013), registou que “descrever a minha mãe seria escrever sobre um furacão no seu poder perfeito.” Angelou teve uma infância difícil e assumiu carregar uma tonelada de traumas. Mas mesmo assim não deixou de transformar as suas dores em conquistas — o célebre “turning pain into gain.” Porque, afinal de contas, a mãe também é uma pessoa; e antes da mãe ser mãe, foi filha. Herdou traumas, copiou padrões, foi incompreendida… O mais determinante dos passos para se lidar com os mommy issues — e especialmente para evitar prolongá-los para a geração seguinte — está no reconhecimento de que se tem um “problema.” “A pessoa precisa de reconhecer que tem uma dependência emocional da figura materna e que isso tem impacto na sua vida e nos seus relacionamentos. Ela também precisa de reconhecer que tais padrões podem estar enraizados desde a infância e que é importante abordá-los para uma vida mais saudável e equilibrada. Além disso, é crucial reconhecer a necessidade de procurar ajuda profissional, como terapia, para lidar com essas questões de forma adequada. Identificar os seus gatilhos, identificar as situações ou eventos que desencadeiam os sentimentos negativos em relação à sua mãe e trabalhar para os evitar e/ou lidar com esses gatilhos de uma maneira saudável. Estabelecer limites saudáveis, nomeadamente definir limites claros com a sua mãe e outras pessoas que fazem parte da sua vida. Não menos importante, é lembrar que ter problemas com os pais é normal e que não há nada de errado em pedir ajuda”, evidencia Ângela Rodrigues. 

Um profissional da saúde mental pode ajudar a pessoa a compreender as raízes do problema, as questões mais profundas, os desafios, as suas emoções e comportamentos e a desenvolver estratégias para lidar melhor com eles. “A terapia pode ajudar a resolver os mommy issues; ou questões relacionadas com a figura materna. Pode ajudar a pessoa a explorar as suas experiências passadas com a mãe, a compreender como essas experiências moldaram as suas crenças e os seus comportamentos atuais, e desenvolver estratégias para lidar com essas questões de forma saudável e construtiva. A terapia pode ainda ajudar a pessoa a construir relações mais saudáveis e satisfatórias, tanto com a mãe quanto com outras pessoas na sua vida”, assegura a especialista. Numa entrevista que em tempos conduzi com o conceituado psicólogo português Eduardo de Sá, este confidenciava-me: “Sabe que eu acho que os gritos da mãe, o lado esganiçado da mãe, devia ser património imaterial da Humanidade (risos). Porque faz parte…”. A verdade é que não há cursos para se aprender a lidar com a maternidade na sua vertente mais psicológica e, creio piamente, toda a mãe faz o melhor que sabe. Não cabe aos filhos carregar os issues transmitidos pelas mães — ou seja por quem for — uma vida inteira. O nome disso é vitimização. Tal como nos afiançou a psicóloga da Clínica da Mente, reconhecer o problema revela-se o primeiro e mais fundamental passo para uma vida mais leve. E não é com absoluta certeza a mãe que tem de o dar. Anotou a escritora britânica Agatha Christie que “uma mãe ama o seu filho como mais nada no mundo. Não conhece lei, nem piedade, ultrapassa todas as coisas e esmaga impiedosamente tudo o que se atravessa no seu caminho.” É verdade. E é também por isso que nunca é demais lembrar que antes de serem super-mulheres-incapazes-de-falhar, as mães, com mais ou menos issues, continuam a ser pessoas.

Artigo publicado originalmente no The Mother Nature Issue da Vogue Portugal, de maio de 2024, e disponível aqui.

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