Artwork de Miguel Canhoto.
São diretores criativos, conselheiros artísticos, co-criadores de coleções cápsula. O público conhece-os da música, do cinema, da televisão, mas de repente apresentam-se como “fashion designers.” Será que as celebridades estão, de uma vez por todas, a ocupar o lugar dos (antigos) couturiers?
A primeira década dos anos 2000 foi repleta de fenómenos paranormais. Episódios que, isolados, seriam vistos como bizarros, insólitos, surreais, mas que dentro da anomalia que foram esses dez anos quase se podem considerar banais. Em 2004, Donald Trump, que então acabava de estrear The Apprentice — concurso que o catapultou para o estrelato, e que ficou dezasseis anos no ar —, lançou uma linha de roupa para homem com o seu nome. A Donald J. Trump Signature Collection, cujos fatos rondavam os 120 euros e eram uma forma fácil de ter o look do milionário americano (gostos não se discutem), chegou a vender-se nos famosos armazéns Macy’s — até 2015, ano em que o antigo ocupante da Casa Branca proferiu graves comentários sobre os imigrantes mexicanos. Jessica Simpson, a girl next-door de The Dukes of Hazzard, que os mais novos conhecerão de eventuais repetições do reality show Newlyweds, começou por apostar numa linha de jeans — fazia sentido, ela era a encarnação da típica rapariga americana, e os daisy dukes [calções de ganga muito curtos] que usa no filme são tão icónicos como a sua personagem. Foi sol de pouca dura. Mas Simpson não se deixou abalar e, em 2005, apresentou o resultado da sua colaboração com Vince Camuto: uma coleção de sapatos. O que parecia uma experiência isolada acabou por se transformar num negócio a tempo inteiro, com a atriz a protagonizar uma das mais bem-sucedidas transições de carreira de Hollywood. O mesmo aconteceu com Sean Combs. Em 2004, quando o mundo o conhecia como P. Diddy, o rapper ganhou o cobiçado prémio CFDA para Designer de Roupa Masculina do Ano pela sua marca Sean John, deixando para trás veteranos como Ralph Lauren ou Michael Kors. Antes disso, Combs tinha sido nomeado três vezes. Mas nenhuma incursão no mundo da moda foi tão inesperada como a de Lindsay Lohan, que provocou um tsunami com a sua passagem pela Ungaro.
Poucos foram os meios de comunicação que não arrasaram a coleção primavera/verão 2010 da maison parisiense, a primeira (e última) com a assinatura da atriz americana a meias com Estrella Archs, designer de origem espanhola. O The New York Times foi talvez das publicações mais “simpáticas” na hora de comentar a estreia de Lohan: “Quando a controversa nomeação de Lindsay Lohan como conselheira artística da marca francesa foi anunciada no mês passado [setembro 2009], Mounir Moufarrige, o novo diretor executivo da Ungaro, disse que a sua intenção era dar à marca envelhecida o equivalente a um ‘tratamento de choque elétrico’. Mas com base na reação à coleção que foi mostrada aqui no Louvre, a primeira desenhada por Estrella Archs com o conselho da Sra. Lohan, ele conseguiu mais do que isso: os editores e compradores presentes disseram que foram eles que ficaram chocados.” Virginie Mouzat, jornalista do Le Figaro, descreveu a contratação de Lohan como um não acontecimento do ponto de vista da moda, mas assumiu estar preocupada com o que isso podia significar. “Talvez este seja o próximo passo na utilização de pessoas por marcas de moda”, afirmou, como se tivesse uma bola de cristal nas mãos. “Mas quando se olha para o seu próprio estilo, para mim ela não é relevante, em primeiro lugar em relação à moda, e em segundo lugar em relação a uma casa de Alta-Costura como a Ungaro. Talvez ela pudesse ser relevante para a Kookaï.” A decisão de convidar a celebridade surgiu depois de, em 2005, a histórica casa ser comprada por Asim Abdullah, engenheiro informático paquistanês sem qualquer experiência ou ligação à indústria. Foi a nomeação de Mounir Moufarrige — responsável por substituir Karl Lagerfeld por Stella McCartney na liderança da Chloé, em 1997 —, como CEO da maison que deu início a uma série de “desastres.” Primeiro foi a escolha de Esteban Cortázar, jovem criador de 23 anos, para diretor criativo. A seu respeito, Cathy Horyn, poderosa crítica de moda, disse faltar-lhe tudo: “Experiência, idade e até sofisticação e visão própria para capitanear a Ungaro.” Mal ela sabia que, daí a nada, a dupla Archs e Lohan iria surpreender tudo e todos com uma coleção colorida e descomplicada, que até podia estar nas montras de uma loja fast fashion, mas nunca na passerelle de uma das mais antigas casas de Alta-Costura de Paris. Depois da polémica em torno do desfile, Moufarrige acabou por confessar que a escolha de Lindsay Lohan teve como principal objetivo gerar publicidade, e assumiu estar surpreendido “com o facto de as críticas não terem sido ainda mais negativas.”
O pesadelo vivido por Lohan durante a novela Ungaro é apenas um sintoma dos maus tratos que a atriz sofreu durante o início dos anos 2000, época em que era, a par com Britney Spears e Paris Hilton, tema preferido dos tablóides. A sua popularidade estratosférica, a mesma que justificou a adoração de milhões de fãs, virou-se contra ela sempre que deu um passo em falso, fosse a conduzir alcoolizada ou a criar uma coleção de roupa “imprópria” para uma marca de luxo. Seria ela a culpada de muitos dos seus erros, ou será que houve um claro aproveitamento de quem viu no seu star power um meio para atingir um fim? A esta distância, não terá sido ela uma vítima dessa cilada meticulosamente preparada para gerar milhões de dólares? No fundo, é disso que falamos quando falamos em “celebridades que viram designers”: numa gigantesca ação de marketing. A linha de Madonna, Material Girl, lançada em conjunto com a filha, Lourdes Leon, em 2010, não fica para a história, mas serviu para aumentar (ainda mais) a fortuna da artista americana. As Kardashians, que começaram por ser “apenas” ricas, depois famosas, graças ao seu reality show, Keeping Up With The Kardashians, deram os primeiros passos no mundo da moda em 2011, com uma coleção lançada com a Sears, uma espécie de department store e supermercado. Hoje em dia as irmãs mais famosas do mundo estão em todos os desfiles importantes das semanas de moda. O ano passado, Kim Kardashian aliou-se à Dolce & Gabbana para concretizar Ciao, Kim, um conjunto de peças que cobrem o período de 1987 a 2007 da marca, e que foram reinterpretadas com a ajuda da empresária — nenhum site deixou de noticiar a parceria. As celebridades são, fundamentalmente, o oposto dos criadores-fantasma, que recusam a ribalta e vivem no anonimato, alheios ao ruído das redes sociais e das passadeiras vermelhas. Virginie Viard, que substituiu Karl Lagerfeld na Chanel, é o seu contrário em termos de mediatização. Na Celine, e apesar de polémico e provocador, Hedi Slimane raramente aparece ou dá entrevistas. Depois de uma saída tumultuosa da Dior, John Galliano é tão discreto na Maison Margiela como o seu fundador. Longe vão os tempos em que os grandes criadores eram, também, grandes personalidades. Giorgio Armani é um dos últimos couturiers ainda no ativo. Hoje em dia, a publicidade é gerada por “embaixadores” e “amigos” das marcas, cujo papel rapidamente se transforma em algo mais. Dua Lipa, presença habitual nas campanhas da Versace, aceitou o convite de Donatella Versace para co-assinar uma coleção La Vacanza, apresentada durante o Festival de Cinema de Cannes: a 23 de maio passado, numa sumptuosa vila no Sul de França, o resultado dessa colaboração foi conhecido perante uma audiência onde se contavam, entre outros, Lewis Hamilton e Jacquemus. Beyoncé e Olivier Rousteing, diretor criativo da Balmain e seu amigo pessoal, lançaram em março Renaissance Couture, uma coleção inspirada nas músicas do seu último álbum. Daí que certas notícias, como a escolha de Pharrell Williams para chefiar as coleções de homem da Louis Vuitton, não sejam assim tão surpreendentes.
É tão simples como isto: quem gosta do estilo de Pharrell Williams quererá comprar um casaco Louis Vuitton para “se aproximar” dele. Os fãs imaginam-se (inconscientemente, claro) a adquirir um pedaço, necessariamente sagrado, do seu ídolo, esteja ele a vender uma carteira de dez mil euros ou umas calças em final sale. Mas, sublinhe-se, o músico está longe de ser um novato. Pharrell dirige a sua linha de streetwear, Billionaire Boys Club, há quase duas décadas, e ajudou a impulsionar as carreiras de marcas como a BAPE e a Cactus Plant Flea Market, por exemplo. É presença habitual nas listas de mais bem-vestidos (vale o que vale). O seu olho está muito bem treinado. Tal como escrevia há poucos meses o site Higsnobiety: “Pharrell tem muito bom gosto e, sejamos realistas, estamos a falar da Louis Vuitton: entre o reconhecimento universal de Pharrell e a capacidade criativa inerente à equipa da LV, o que quer que aconteça é quase garantido que, pelo menos, terá bom aspeto e venderá muito. É uma decisão comercial astuta.” No entanto, alertava o jornalista responsável pelo texto, nem tudo são rosas. “Dito isto, o meu maior problema é que Pharrell, uma figura bem estabelecida da cultura pop, tão limpinha que o seu maior single de sempre foi criado para um filme dos Minions, tem de ser a escolha mais segura possível para substituir Virgil Abloh.” E concluía: “Se as casas de moda continuarem a privilegiar as celebridades em vez dos jovens designers, nunca mais haverá outro Virgil Abloh.” É precisamente este o medo da maior parte dos seguidores de moda: o que acontece se, de repente, aqueles que sempre estudaram para isso forem, pura e simplesmente, aniquilados? Tal não deverá acontecer, dizem as vozes mais sensatas. A indústria precisa de criatividade e de sangue novo, e não pode sobreviver do hype e do ruído que rodeiam o dia a dia de uma celebridade.
Claro que há exceções. Encontramos dois casos de sucesso, ambos totalmente inesperados. Victoria Beckham e as irmãs Olsen — a primeira ex-Spice Girl, as segundas ex-atrizes desde o berço — são provavelmente os melhores (se não os únicos) exemplos de famosos que conseguiram vingar como designers — não de uma linha de fast fashion, mas de marcas estabelecidas, apreciadas pela crítica e pelo público. Beckham, que durante anos e anos foi vista como pouco mais que uma WAG (acrónimo que se refere a mulheres e namoradas de desportistas) com dinheiro, que vivia na sombra do seu passado como Posh Spice, arregaçou as mangas e, em 2008, lançou a sua marca homónima. Os aplausos não se fizeram esperar e, quinze anos depois, a criadora é sinónimo de elegância e sobriedade. Já Mary-Kate e Ashley, cujo estilo era (e é) copiado até à exaustão, criaram a The Row em 2006. O sucesso não foi imediato, um pouco à semelhança do aparato em torno da marca, que foi pouco ou nenhum. As gémeas mais famosas de Hollywood preferiram a discrição e o crescimento sustentado e, hoje em dia, a The Row equivale ao pináculo do luxo. O que têm Beckham e as Olsen que todos os outros não têm? Dedicação. Este é o seu único trabalho. Tal como lembrava a jornalista Teri Agins, autora do livro Hijacking the Runway: How Celebrities Are Stealing the Spotlight from Fashion Designers, numa entrevista a uma publicação americana, “as Olsen eram atrizes infantis que cresceram e se tornaram criadoras de moda. Victoria Beckham diz: ‘Sou mulher, mãe de quatro filhos e designer de moda.’ E é isso que ela faz. (...) Sim, as celebridades podem imediatamente passar à frente de toda a gente. As pessoas compram [os seus produtos] uma vez. Se as roupas continuarem a dar resultados, compram-nas novamente. Mas não se pode basear um negócio de moda apenas nos fãs.” Aqui está a resposta à pergunta de um milhão de euros.
Artigo retirado do The Fame Issue, de outubro de 2023. Disponível aqui.
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