Dizemos tantas vezes que falamos a língua de Camões, mas porque não dizer que escrevemos na voz de Maria teresa Horta, de Natália Correia ou de Sophia de Mello Breyner Andresen? Estas poetas fazem-no todos os dias.
Dizemos tantas vezes que falamos a língua de Camões, mas porque não dizer que escrevemos na voz de Maria Teresa Horta, de Natália Correia ou de Sophia de Mello Breyner Andresen? Estas poetas fazem-no todos os dias.
Afinal, a poesia é um substantivo feminino. A palavra também, que engraçado. Coincidência? Não quando somos o país de Florbela Espanca, Adília Lopes, Filipa Leal, Ana Luísa Amaral, Rosa Alice Branco, Alice Vieira, Maria do Rosário Pedreira e tantas, tantas outras mulheres ao lado de quem qualquer adjetivo cai manso, por terra. A poesia não é uma arte morta nem é a palavra esquecida. A poesia continua a ferver nas veias das mulheres portuguesas, que a escrevem, que a lêem, que a declamam. Continuam a nascer movimentos poéticos, associações da palavra dita; há, por esses bares em caves cheias de corações, noites em que a poesia é a moeda corrente. E enquanto existir quem a escreva, enquanto existir quem a leia, enquanto existir quem a declame mas, sobretudo, enquanto existir quem a sinta, não há poesia que morra.
Estas são as poetas que estão, hoje, na ponta da nossa língua.
Andreia C. Faria
Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração, edições Artefacto, 2015.
Haveria árvores em vez de homensno sentido em que os homens crescemno lugar das árvores, ao invés das árvores
Fossem as árvores casas a desmontar e esquecercomo a cabeça que dói, cresceríamosárvores de pernas para o ar, ramoslutando no sentido do céu, o sentido da cabeça,esse, para baixo, mais fundona morte, e ainda os cabelos e as memóriasirrompendoda armação de osso por onde hão-de espreitararqueólogos de dedos translúcidos
Haveria árvores em vez de homens
A cabeça que pousono reduto da árvore ausenteé ao invés da árvore uma casadescendente, com o sentido de um jarroesvaziado na terra
Catarina Nunes de Almeida
Bailias, edições Deriva Editores, 2011.
Cântico das nervurasSão tão largas as noitespara a concisão de um corpo.Tão escuro o sorriso que as pernas abremao mundo.E no entanto animal que passealoira-se nas águas e gemede uma alegria que tem flores e frutos.
Rosa Maria Martelo
Siringe, edições Averno, 2017.
A seringa recolhe, transporta, inocula.Mais perto do pânico da ninfa fugitiva,o inglês tem a palavra syringe. Cânulas, canas,Syrinx em fuga na margem do rio, mudadana forma dos caniços, nas canas ligadas da flauta de Pã.Mas há outra siringe, um órgão de tubosna garganta das aves. Dizem que encerra afinidadescom os sons em volta e reproduz as frequências ouvidas,que as refaz por simpatia.O mesmo pathos, quer dizer, um mimeógrafosonoro à entrada dos pulmões; túnel onde passa o ar,o sangue, vento; alguma coisa das nuvens.
Marta Chaves
Varanda de Inverno, edições Assírio & Alvim, 2018.
ÚLTIMA HORA
Sempre tive o pressentimento
de que morreria alvejada
por uma bala perdida.
Aconteceu hoje numa cidade
onde nem sequer estava,
num tiroteio que não vi.
Susana Araújo
Dívida Soberana, edições Mariposa Azual, 2012.
SPREAD
A colcha branca conhece o lucro dodiluído acervo que se estende angulososobre mar incerto. Reúne no húmido centroos resultados do nosso câmbio (como aliásficou demonstrado em extrato integrado)Na performance da métrica quenos torna igual à diferença entreo custo do capital (total) e a reposição doseu investimento (impossível), arquejamdobradas as tuas pernas dispersaspartidas, abaladas (i.e. das minhasjá desenlaçadas).
Tatiana Faia
Um Quarto em Atenas, edições Tinta da China, 2018.
Aula de arqueologia (excerto)
não, ela era bem como tucomo mais ninguém foi depois ou é ou virá a sere tu procuras ainda a última caraa promessa do encaixe da mão no perfile isso acabou há tantos anosfoi antes mesmo desta cidadeum facto para ser cobertopor ruínas e areias e novas construções e desenterradoquando alguém voltar para tactearentre as omoplatas e a cavidade torácicao que agora está descompostoe foi esta coisa viva:o corpo que tu usaste
Teresa M. G. Jardim
Jogos Radicais, edições Assírio & Alvim, 2010.
Pão para a boca
Livrose doce de amoras – o teu pãopara a boca,não é o meu:o meu pão é seco,soco,na caraas palavrasescritas, um pouco antes.
Raquel Nobre Guerra
Senhor Roubado, edições Douda Correria, 2016.
Uma vez ofereceste-me bananasflores para ti, vinha escrito.Percebo bem a inutilidade da poesiacomo de resto a literatura que fingea mínima desordem dos mundoso que importa é fingir uma pose.Explico.O mais extremo acto de egoísmo:ter a dimensão própria da caricaturae endossá-la aos outros.O que toca a afinal e a quem, que sejamos sinistros?E o amor um candeeiro de rua frouxo que à nossa passagem se desliga.Dou conta dos perecíveis.De ti sabe-se que tinhas um jeito especialde dar bailinho aos deuses com as mãosenquanto eu de nariz espetado nesse cimapreferia o abandono onde nada me faltava.Entendo agora que as bananas dormem com as tuas mãos debaixo da terra e que o nosso amor flutua ainda na calcite.O mundo, seja como for, cabe nisto.E eu corro para casa com um bouquet de flores mas tu não estás.Nada que não estivesse previsto,heartbreakers, love comes in spurts.
Cláudia R. Sampaio
Ver no escuro, edições Tinta da China, 2016.
Tragam-me um homem que me levante comos olhosque em mim deposite o fim da tragédiacom a graça de um balão acabado de enchertragam-me um homem que venha em baldes,solto e líquido para se misturar em mimcom a fé nupcial de rapaz prometido a despir-seleve, leve, um principiante de pássarotragam-me um homem que me ame em círculosque me ame em medos, que me ame em risosque me ame em autocarros de roda no precipícioe me devolva as olheiras em gratidão deestarmos vivosum homem homem, um homem criançaum homem mulherum homem florido de noites nos cabelosum homem aquático em lume e inteiroum homem casa, um homem invernoum homem com boca de crepúsculo inclinadode coração prefácio à espera de ser escritotragam-me um homem que me queira em mimque eu erga em hemisférios e espalhe e canteum homem mundo onde me possa perdere que dedo a dedo me tire as farpas dos olhosatirando-me à ilusão de sermos duasnovíssimas nuvens em pé.
Madalena de Castro Campos
La Mariée Mise à Nu, edições Companhia das Ilhas, 2017.
Hora de inverno
Telefonava à noite.Chamadas internacionais.Não dissera a ninguém onde estava.Fazia de conta que continuava em Lisboa,e combinava, às vezes, vagos encontros paraa semana seguinte.Iria faltar.Depois de desligar, saía pelas ruas à procurade um bar.Entre o que se comprava e o que se vendia,acabava por cair na troca directa.A cerveja pela companhia,o whisky pela cama.
Rute Castro
O sangue das flores, edições Artefacto, 2014.
e tu aí
na casa que permanece com as suas dores de doença na construção,a casa espreita a saudade e guincha o fresco das árvores na companhiado esquecimento,
agrego os sentidos, agrego tudo e junto a confrontos dessa vozcomigo, e afinal o frente a frente dá-se despido,e afinal não nos deixam sem que nos caia o paraíso, que se desmanche,
e afinal ganhar é esse corte a meio.
Margarida Vale do Gato
Lançamento, edições Douda Correria, 2016.
Margarida
A nossa solidão é esta avenida decotadado passeio do acaso, furtiva e escancaradaartéria tantas vezes paralela ao coraçãoonde um almirante não serve a arquiteturaonde sobe a miséria do terminal do elétricoaté à igreja fronteira à sopa dos pobresefémeros sentinelas armando cartõesnas fachadas das lojas, trastes, artigosde ocasião (apanham-nos de dia noivosinvestindo num projecto de família).O nosso é este meio de solidão que se carregade qualquer coisa que não é bem perpétuaatmosfera de névoa nem sujidade, que tambémé terna, pena suspensa (corvos de Lisboa, nausgastas), saudade, porque não, sentimentode povo sem pátria desmentido; crer creionisto que na indigência e vício coexiste a gentedá-se e da carência faz-se uma disciplina às clarase por muito pouco desprende-se quase nadaque se tem
Matilde Campilho
Jóquei, edições Tinta da China, 2016.
Avarandado
Quarta nota paraa manhã infinita:
Afinal o grande amorNão garante nada maisDo que as 12 graçasDesdobradas pelosCorredores do mundoAgora isso é maisDo que suficienteE apesar dos bofetõesDo tempo invertidoApesar das visitasBreves do pavorA beleza é tudoO que permanece.
Sónia Balacó
Constelação, edições Mariposa Azual, 2015.
penseique a liberdade vinha com a idadedepois penseique a liberdade vinha com o tempodepois penseique a liberdade vinha com o dinheirodepois penseique a liberdade vinha com o poderdepois percebique a liberdade não vemnão é coisa que lhe aconteçaterei sempre de ir eu
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