O avô de Simone Rocha era macaense e é por isso que reconhecemos o apelido. Mas Simone Rocha é do mundo inteiro e é por isso que a reconhecemos a ela.
O avô de Simone Rocha era macaense e é por isso que reconhecemos o apelido. Mas Simone Rocha é do mundo inteiro e é por isso que a reconhecemos a ela. Não acena um estandarte por ter uma equipa de design 100% feminina porque encara isso como meritocracia e não como uma afirmação de género. Produz na Europa – no Reino Unido, Itália e Portugal –, mas raramente fala disso porque encara como natural que a preocupação com a qualidade e a justiça para com os trabalhadores seja uma exigência. Tudo em Simone Rocha é como é porque é assim que tem de ser. É desta certeza, desta convicção que desenha todos os pequenos contos que são cada coleção, que saem os vestidos com os quais sonhamos acordados, as peças que compõem os guarda-roupas de todas as princesas guerreiras.
Simone Rocha © Eoin McLoughlin
Simone Rocha © Eoin McLoughlin
Quando olha para a sua carreira, para o seu percurso até agora, sente que aconteceu tudo muito depressa ou acabou por ser uma evolução natural, mais calma?
É engraçado, eu sinto que foi um pouco dos dois. Sinto que levou o seu tempo e que foi muito orgânico, mas se olhar de fora percebo que foram apenas sete ou oito anos e que foi uma trajetória muito rápida. Por isso são os dois. Ao nível pessoal, levou o seu tempo. Ao nível profissional moveu-se tudo muito rápido.
E falando em tempo, acha que a forma como a indústria de Moda vive o tempo hoje em dia é sustentável? Acho que depende da forma como o interpretas para ti e para a tua empresa. As pessoas deveriam fazer sempre as coisas que acham mais certas para si. Deveria ser ao ritmo que sentes que consegues crescer e mostrar trabalho. Tens de ignorar toda a confusão à tua volta e fazer as coisas da forma que sabes que consegues fazer, e tentar fazê-las o melhor que podes.
É uma questão de cada marca e de cada designer crescer por si, pelo que acredita, e não seguir o que todos os outros estão a fazer, e como estão a fazer. Exatamente. É complicado, porque toda a gente vai ser sempre diferente, e toda a gente também se vai estar sempre a queixar [risos]. Acho que é muito importante que te foques em ti e que tentes navegar na indústria o melhor que podes.
"Estou sempre a pensar de uma forma prática."
Os seus designs são cheios de contradições. São absolutamente femininos, mas oversized. São pragmáticos, mas são doces. Sempre teve consciência desta dicotomia?É algo que acontece de forma absolutamente natural. Sempre quis brincar com as proporções, sempre quis que as coisas parecessem um bocadinho deslocadas, esse sempre foi o meu tipo de letra natural.
Encontrou a sua identidade muito cedo? Quando começou a desenhar, sabia exatamente o que queria? Sim. Mesmo que recues até à minha licenciatura ou ao meu mestrado, ao que fiz na escola, aos desenhos que costumava fazer quando era pequena, tudo se entrelaça. Estou a fazer um projeto que reflete muito da minha infância e adolescência e consegues absolutamente ver que tudo vem do mesmo fôlego. Para mim é completamente natural. E é algo que eu sinto que me dá força.
Os seus designs são extremamente pessoais? Bom, não todos [risos]. Há peças que me divirto mesmo a fazer, quase como uma experiência extracorporal. Mas experimento quase sempre as peças em mim e na minha equipa, só para ter a certeza que sentimos que é cool. É isso que faz a diferença entre o meu trabalho e outros que são assumidamente mais femininos. É isso que faz com que a minha roupa não seja demasiado dressy ou espalhafatosa. É porque penso que a vou usar, ou que a minha equipa a vai usar, ou que a minha mãe a vai usar, ou que uma mãe que está a cuidar dos filhos a vai usar. Estou sempre a pensar de uma forma prática.
É importante que uma peça de roupa seja mais do que uma peça de roupa? Que nos faça sentir alguma coisa, como um poema, ou um edifício com uma arquitetura maravilhosa, ou uma rua que nunca vimos antes? Sim, com certeza. É um investimento tão grande pedir a alguém que use o que faço, que sinta o que faço. Quero sempre dar alguma coisa em troca, e acho que as pessoas sentem isso. Sentem o peso de uma peça que é produto de um processo de pensamento, que é produto de um estudo sobre a forma como assenta no teu corpo, sobre a forma como te vai fazer sentir. Acho que isso é muito importante.
Porque não compramos alguma coisa só porque é bonita, compramos porque nos faz sentir alguma coisa. Exatamente. É nostálgico e faz as pessoas lembrar-se da sua primeira comunhão, ou fá-las lembrar do uniforme da escola, da segurança que sentiam nessas alturas, da segurança de pertencer a um grupo. Não tem de ser superóbvio, pode ser só uma sensação.
"Odeio pessoas que procrastinam, ou que rodeiam e não vão diretas ao assunto, ou que são indecisas."
Há uma palavra muito usada quando se fala do seu trabalho: feminilidade. Acha que é porque faz roupa para mulheres e não para um tipo de mulher? Exatamente! Penso em feminilidade como um conceito que pode ser aplicado a qualquer idade. Não interessa que idade tens, se és mulher ainda és mulher. Não tens de ser sempre jovem e funky, ou estar no que a sociedade considera que é o ponto alto da tua vida, sabes o que quero dizer? Vais ter sempre sentimentos, emoções e motivações. E acho que isso vem sem idade. O facto de eu trabalhar com muitas mulheres, incluindo a minha mãe, significa que estou a pensar no que faço em todas as idades.
O que é que para si é aborrecido? Não ter tempo! É tãããããão aborrecido. Também odeio procrastinar. Odeio pessoas que procrastinam, ou que rodeiam e não vão diretas ao assunto, ou que são indecisas. Temos tão pouco tempo para essas coisas! É por isso que me aborrece.
A Simone tem muito orgulho em manter a sua marca independente, e sei que admira outras marcas – maiores e mais pequenas – que também conseguem conservar a sua independência. É uma das coisas que mais luta para sustentar e que lhe está mais perto do coração? De momento sim. Com certeza. É uma coisa de que me orgulho muito, ter conseguido construir um negócio de forma independente. Para mim é um verdadeiro luxo conseguir ter este controlo nos dias de hoje, mas ainda assim conseguir mostrar a coleção em Londres, onde estás a uma escala internacional, ou até conseguir mostrá-la noutros países.
Niko Riam veste vestido em tule de seda bordado a lantejoulas de Simone Rocha. ©Fotografia de Andree Martis, direção criativa de Doris Helmlinger e styling de Tess Yopp. Vogue Portugal de maio 2018
Niko Riam veste vestido em tule de seda bordado a lantejoulas de Simone Rocha. ©Fotografia de Andree Martis, direção criativa de Doris Helmlinger e styling de Tess Yopp. Vogue Portugal de maio 2018
Li que é fortemente influenciada por Arte. Sim, definitivamente Arte. Quando fui para a escola, foi uma escola de artes, e depois estudei Belas‑Artes antes de ir para Design, e é algo que eu adoro e adoro que consiga influenciar-te, quer seja através de uma emoção, em resposta a uma obra de arte, ou literalmente pode ser uma paleta de cores que depois me faz desenvolver os tecidos a partir daí. É um poço sem fim de inspiração.
Acha que este background de arte a ajudou a olhar para a roupa de outra forma? Eu achava que ia ser uma artista.
E é. Exato! [Risos] Eu percebi que a forma de conseguir expressar ou materializar os meus sentimentos era, na verdade, através do design. Era a minha forma de fazer as pessoas ver um desfile e sentir alguma coisa mais forte do que se eu tivesse feito uma escultura. Percebi que era essa a minha força. É uma influência gigante, e a arte e o design andam mesmo de mãos dadas.
Foi difícil perceber isso? Na altura sim, porque era um verdadeiro cliché. A minha família trabalhava em Moda e eu sempre fui tipo “Não, eu não vou fazer isso.” Mas eu cresci à volta disso toda a minha vida, trabalhei com o meu pai [o designer John Rocha] toda a minha vida. Por isso era supernatural que acontecesse.
"Para mim a Moda sempre teve a ver com gosto, o gosto pessoal de cada pessoa, e essa evolução pode vir de influências de cultura e de tempo e de espaço."
Era incrível ter um livestream do que se passa na sua cabeça durante o processo de criação. Como é que costuma pensar? Em imagens, em emoções? Eu vejo sempre as coisas em contraste. Por exemplo, vejo flores e… sacos de plástico. Olho para os dois e tento perceber como é que se conjugam. Posso estar a pensar em música ao mesmo tempo… É muito como se fosse uma colagem. Nunca é tipo um vestido lindíssimo para o qual eu vou olhar durante 12 dias só a pensar na manga. Vai ser sempre um choque de influências.
O conceito de Moda, para si – e dado que cresceu com ela – foi evoluindo? Ou sempre teve uma noção muito forte do que significava? Acho que evoluiu. Para mim a Moda sempre teve a ver com gosto, o gosto pessoal de cada pessoa, e essa evolução pode vir de influências de cultura e de tempo e de espaço. Obviamente o meu conhecimento acerca da Moda enquanto indústria e negócio evoluiu totalmente. Mas tudo volta ao mesmo sítio: gosto e criatividade.
Qual é a sua primeira memória de algo belo? Provavelmente o campo, o campo irlandês será a minha primeira memória, assumindo que eu achava que era realmente bonito.
Continua a voltar a essa memória? Sim, até porque volto à Irlanda muitas vezes e uso-a como fonte de inspiração.
Perguntei-lhe sobre Moda, mas o seu sentido estético e de estilo também evoluiu? Na verdade não [risos]. Sempre fui obcecada pelo meu uniforme da escola, e de estar vestida com um uniforme e em uniformidade. Quando trabalho estou quase sempre com uma saia preta, uma camisa branca e um jumper preto – como o uniforme da escola. Outra coisa que sempre fiz enquanto criança foi usar saias gigantes e tutus, mas usá-los como vestidos, que era a minha cena na adolescência, e agora faço vestidos que são exatamente dessa forma, mas têm mangas e pescoço e buracos para pores os braços. Acho que se refinou, mas é muito a mesma assinatura.
Encara a nova geração de consumidores como mais exigente? Como clientes que esperam transparência, respeito, significado e práticas sustentáveis das marcas que compram? Acho que esta geração começa as conversas, e acho que isso não é uma coisa má. Porque hoje em dia os jovens estão mais informados sobre a Moda, a política, as alterações climáticas. Mas estão mais informados porque veem essa informação em pedaços, em barras laterais no Facebook e tudo isso. As pessoas veem tudo a toda a hora. Por um lado torna tudo mais descartável, mas por outro lado também torna as pessoas mais conscientes. E acho que a consciência é sempre uma coisa boa. Só que às vezes isso chega à custa de coisas como a Moda, que se torna muito descartável. O que é difícil porque muitas pessoas trabalharam muito para que aquelas peças existissem. É um equilíbrio frágil.
Niko Riam veste vestido em tule de seda bordado a lantejoulas de Simone Rocha. ©Fotografia de Andree Martis, direção criativa de Doris Helmlinger e styling de Tess Yopp. Vogue Portugal de maio 2018
Niko Riam veste vestido em tule de seda bordado a lantejoulas de Simone Rocha. ©Fotografia de Andree Martis, direção criativa de Doris Helmlinger e styling de Tess Yopp. Vogue Portugal de maio 2018
Precisamente por causa deste bombardeamento de informação, é mais difícil passar esse tipo de mensagens, por exemplo, do trabalho e da equipa e das horas que são necessárias para criar um vestido que é encarado como descartável? Não… porque ao mesmo tempo que isso acontece, as pessoas também valorizam algo que têm de procurar. E não teriam de o procurar se tivessem sempre a informação toda.
Sendo esta uma péssima pergunta, porque é que se tem tornado cada vez mais difícil prever o futuro, o que é que gostaria que a Simone Rocha, a marca, fosse daqui a dez anos? Gostaria que continuasse relevante e inovadora e criativa e estimulante, tanto para mim como para os meus clientes. Gostaria de continuar a abrir lojas, que é uma coisa de que gosto bastante e que ajudou a construir o meu negócio. E que continuasse a ter projetos muito interessantes, a colaborar com pessoas muito interessantes, a criar novos postos de trabalho, novos meios para pessoas noutras indústrias.
Para si as lojas físicas continuam a ser essenciais? Sim! E se todos os computadores rebentarem? Sabes? Acredito mesmo que as lojas são muito importantes. Olha para Lisboa, para estes edifícios lindos, ainda têm tanto peso e importância. A forma como esses edifícios evoluem… o que é que fazes para que continuem interessantes e estimulantes? Que produtos pões lá? Como é que convidas as pessoas a vivê-los de maneira diferente? Para mim, enquanto designer, isso cimentou a minha identidade em todo o mundo. De um ponto de vista de negócio é importante que os meus revendedores se possam identificar com o que faço, mas de um ponto de vista do consumidor, quero que toda a gente que esteja nem que seja um bocadinho interessada no que faço possa entrar e ver o meu mundo.
E é mais fácil transmitir a mensagem do que faz quando o consumidor pode sentir, pode tocar, pode cheirar a roupa. Exatamente. Dá-lhe peso.
Não é só uma imagem em 2D. Sim, e as coisas podem parecer incríveis no Instagram, mas depois vês ao vivo e foram cosidas do avesso com faca e garfo. Como é que podes esperar que as pessoas invistam nisso?
* Artigo originalmente publicado na edição de novembro de 2018 da Vogue Portugal.
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