Um ano depois do escândalo que envolveu Harvey Weinstein, a Vogue conversou com quatro mulheres sobre o impacto global dos movimentos #MeToo e Time’s Up, que ecoaram em Hollywood e mais além.
Um ano depois do escândalo que envolveu Harvey Weinstein, a Vogue conversou com quatro mulheres sobre o impacto global dos movimentos #MeToo e Time’s Up, que ecoaram em Hollywood e mais além.
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A imagem de Harvey Weinstein em algemas, que circulou pelo mundo a 25 de maio de 2018, foi uma imagem poderosa. O magnata de Hollywood – que foi, primeiramente, acusado de assédio, violação e abuso a uma série de mulheres influentes, em artigos publicados pelo The New York Times e pelo New Yorker -, foi formalmente acusado de dois crimes de violação e um ato sexual criminoso. Das 87 mulheres que falaram publicamente sobre o caso de Weinstein, apenas três delas foram consideradas credíveis para formar uma investigação dirigida ao produtor – um caso que continua, ainda hoje. Na altura, o sabor foi de vitória, mas era apenas a ponta do icebergue.
As acusações dirigidas a Weinstein fizeram nascer as campanhas #MeToo e Time’s Up. No decorrer dos últimos 12 meses, este movimento coletivo contra violações baseadas no género traduziu-se numa série de imagens comoventes: um oceano de atores vestidos de negro nos Golden Globes 2018; mulheres a marcharem um pouco por todo o mundo com o agora universal pussy hat; e Christine Blasey Ford a levantar a sua mão, num gesto de juramento antes de testemunhar contra Brett Kavanaugh, nomeado ao Supremo Tribunal.
#MeToo, o slogan criado pela ativista Tarana Burke em 2006, e transformado num hashtag viral pela atriz Alyssa Milano como resposta ao escândalo Weinstein, foi tweeted mais de 18 milhões de vezes nos últimos 12 meses. O movimento fez cair as carreiras de outros homens poderosos, entre eles Bill Cosby, Kevin Spacey, Brett Ratner, Roy Moore, candidato republicano ao Senado, e Les Moonves, CEO da CBS. Influenciou um protesto na passadeira vermelha de Cannes; um documento Google que expunha mais casos de abuso na indústria dos Media; e uma capa da edição Person of the Year da revista Time dedicada àquelas que “quebraram o silêncio”. Mais do que isso, foi o catalisador para uma urgente e muito esperada reavaliação dos casos de assédio sexual no local de trabalho – uma questão que ecoa muito para além dos limites de Hollywood.
Um projeto recente do Google Trends, intitulado Me Too Rising, expôs a escala deste problema global. Registando um pico de pesquisas pelo termo “Me Too” ao longo do tempo, este projeto mostra a forma como a frase se espalhou pelo mundo fora, de Benin City a Buenos Aires. Existem, agora, diversas iterações multilíngues do hashtag original – #BalanceTonPorc na França, #QuellaVoltaChe na Itália, #YoTambien em países de língua espanhola, e #Ana_Kaman no universo árabe -, bem como protestos e marchas em todos os continentes.
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No Reino Unido, um debate sobre a diferença salarial entre homens e mulheres na BBC despertou uma discussão nacional sobre a questão da igualdade, e levou a que Membros do Parlamento do sexo feminino lançassem a campanha #PayMeToo, uma forma de responsabilizar os empregadores. Na Índia, a atriz de Bollywood Tanushree Dutta transformou-se no rosto do movimento depois de ter acusado o ator veterano Nana Patekar de assédio. O movimento afetou também o setor humanitário, no seguimento do escândalo Oxfam, no qual figuras seniores da instituição de caridade foram alegadamente acusadas de terem pago por atividades sexuais enquanto trabalhavam em Chade e no Haiti. Este ano, o Prémio Nobel da Paz tirou o seu chapéu ao movimento #MeToo – foi entregue ao médico ginecologista congolês Denis Mukwege e à ativista yazidi Nadia Murad “pelos seus esforços de acabar com o uso da violência sexual como uma arma de guerra ou em conflito armado”.
Mas o que mudou, realmente, para as mulheres afetadas? O Time’s Up Legal Defense Fund, lançado a 1 de janeiro de 2018 por mais de 300 membros da indústria cinematográfica, conseguiu angariar mais de 22 milhões de dólares para aqueles que lidam com o assédio no local de trabalho. De outubro a dezembro de 2017, a Rape, Abuse & Incest National Network, nos Estados Unidos da América, registou um aumento de 23% nas chamadas para as suas linhas de crise, comparado com o ano passado – um número que sugere uma maior disposição por parte das sobreviventes para denunciarem os seus casos.
Ao mesmo tempo, a Warner Brothers tornou-se o primeiro grande estúdio de Hollywood a lançar uma política de diversidade “inclusion rider” por toda a empresa, no seguimento do discurso de Frances McDormand nos Óscares deste ano, que popularizou o termo. O Festival de Cinema de Cannes mostrou intenções similares ao embarcar numa programação equilibrada a nível de género até 2020, para além de uma nova lei que prevê que as empresas de capital aberto, no estado da Califórnia, devem ter pelo menos uma mulher nos quadros de administração.
Apesar de todos os progressos, não é segredo que demos alguns passos para trás. A 6 de outubro de 2018, Brett Kavanaugh foi confirmado ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América. Um ano depois do dia em que o The New York Times expôs o caso de Weinstein, esta decisão mostrava que a estrutura patriarcal de poder nos Estados Unidos da América permanecia intacta. O próprio Weinstein continua em prisão domiciliar enquanto aguarda pelo julgamento, apesar de a CNN avançar que, devido a um conflito interno entre o Procurados do Ministério Público de Manhattan e o departamento policial de Nova Iorque, o caso de Weinstein pode nunca ver o seu desfecho. A luta está longe de acabar. Para celebrar um ano dos movimentos #MeToo e Time’s Up, a Vogue conversou com quatro mulheres sobre aquilo que mudou, e os passos que se seguem.
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Alyssa Milano, atriz e ativista
“Quando fui confrontada com o escândalo sobre Harvey Weinstein, estava em Atlanta, a gravar a primeira temporada de Insatiable. O meu marido é agente na Creative Artists Agency, por isso soube deste caso antes do artigo sair, através das ligações dele na CAA. Senti-me aterrorizada. As mulheres no meu país estavam a atravessar um ano complicado. Elegemos um presidente que foi acusado de assédio sexual, e que tentava tirar-nos os nossos direitos a todo o custo. Depois aconteceu isto, e fez-me pensar: ‘Porque é que as pessoas são tão horríveis com as mulheres?’. No decorrer das duas semanas seguintes, enquanto ouvíamos todas as notícias sobre o Harvey, essa era a pergunta que ecoava na minha mente.
O que me chocava mais na cobertura noticiosa era o facto de o foco ser no predador. Era sobre o Harvey, sobre quem ele era, sobre o que ele tinha a perder, e sobre como a sua vida ia ser afetada. Não ouvíamos muito sobre as mulheres que ele tinha magoado. Por isso, a 15 de outubro, quando escrevi aquele primeiro tweet com o #MeToo, era sobre isso que se tratava: eu queria que nos uníssemos em solidariedade. A minha amiga Charlotte Clymer enviou-me um screenshot que dizia, ‘Se todas as mulheres que foram vítimas de assédio sexual ou violação escrevessem ‘me too’ no seu estado, talvez consigamos mostrar às pessoas a magnitude deste problema’. Quando ela me enviou esta mensagem, estava a chorar enquanto via a minha filha a dormir. Isso foi o incentivo para carregar no botão e publicar aquele tweet. No espaço de sete horas, tinha 35 mil respostas e, 24 horas depois, o tópico estava trending em primeiro lugar no Twitter. Em três dias, já tinha alcançado 85 países.
Não imagina que se fosse tornar tão viral. Era algo muito poderoso, porque eu sabia que todas as mulheres na minha vida, de uma forma ou de outra, já tinham lidado com o assédio sexual e a má conduta. O Time’s Up surgiu desta angústia, com a simples ideia de usar a nossa indústria como uma plataforma para consciencializar todas as pessoas para as mulheres marginalizadas, em todo o mundo. Sou embaixadora da Unicef desde 2003 e, juntos, trabalhamos na campanha #HerToo, que pretende ajudar mulheres em países em desenvolvimento. Sinto que, um pouco por todo o mundo, há um novo senso de camaradagem entre as mulheres. Temos que nos apoiar uma às outras – é essencial.
Quando pensamos nos próximos passos, penso que existem três fatores que devemos ter em conta. O primeiro é a educação. As crianças precisam de aprender mais sobre compaixão, aceitação e igualdade, e precisam também de saber, desde pequenas, que o consentimento é essencial – e não me refiro apenas ao consentimento sexual. Tenho um filho com sete anos e uma filha com quatro, e sempre que ele tira os brinquedos à irmã, digo-te que, primeiro, tem que pedir permissão. Se ela disser que não, então não é não. O segundo é a legislação: acho que está mais do que na hora de lutarmos por uma emenda a nível de igualdade de direitos, que nos dê proteção aos olhos da Constituição dos Estados Unidos da América. O último é a ação, tanto dos homens como das mulheres. Os homens têm que nos ajudar, e temos que trabalhar em conjunto para garantir que o abuso de poder tem um fim”.
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Lisa Borders, Presidente e CEO do Time’s Up
“Estava em Nova Iorque quando surgiu a notícia do escândalo de Harvey Weinstein e, na altura, era presidente da Women’s National Basketball Association. No papel de alguém responsável por uma organização de atletas femininas, achei aterrorizador. Queria que ele fosse responsabilizado por tudo aquilo que tinha feito às mulheres naquela indústria.
A equipa do Time’s Up fez um trabalho fenomenal a lançar a organização em janeiro. Nos Golden Globes, todas as atrizes vestiram preto, convidaram ativistas para serem as suas acompanhantes, e a Oprah deu um discurso de incentivo quando aceitou o prémio Cecil B. DeMille. Lembro-me vivamente de estar sentada no meu sofá a ouvir as suas palavras, e a pensar que era o momento de apoiar este movimento. Mais tarde, durante o verão, uma antiga colega da Coca-Cola, Wendy Clark, estava comigo num voo de Nova Iorque para Atlanta. Uma das coisas sobre as quais ela queria conversar comigo era o Time’s Up. Na altura, ela já estava envolvida no trabalho do movimento, do ponto publicitário, e disse-me, ‘Tens que dar uma vista de olhos a isto. Já estás a fazer este trabalho, mas apenas a nível desportivo. Este trabalho é um trabalho que tem de ser feito em todas as vertentes, para todas as mulheres’. Depois disso, juntei-me formalmente aos membros fundadores do Time’s Up, e fui apontada como CEO no outono desse ano.
Aquilo que percebemos é que as mulheres, dos mais diversos grupos socioeconómicos, indústrias, setores e culturas, têm sido abusadas, e isso afeta as suas carreiras de uma forma muito negativa. Mesmo que não falemos a mesma língua, muitas de nós partilham desta mesma experiência traumática. O Time’s Up é uma forma de reconhecer que o problema existe, e que esse problema não tem que persistir. Temos que institucionalizar a mudança e redesenhar um mundo onde as mulheres, em todo o mundo, têm um trabalho seguro, justo e digno. Com o Time’s Up Legal Defense Fund, conseguimos angariar mais de 22 milhões de dólares. Cerca de 3.500 pessoas procuraram a nossa ajuda, e 800 advogados voluntariaram-se a ajudar do ponto de vista legal. Distribuímos 750 mil dólares por 18 organizações que apoiam as mulheres. Em termos de mudar a legislação, estamos a trabalhar na nossa agenda de pesquisa e política neste preciso momento. Existem tantas vozes neste movimento, e o meu papel enquanto CEO é unir todas estas vozes e articular aquilo que estamos a tentar fazer. Temos muito mais para revelar no próximo ano”.
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Phumzile Mlambo-Ngcuka, Diretora executiva da UN Women
“O mais importante do movimento #MeToo é ter dado visibilidade ao problema do assédio sexual, e mostrar que este não tem barreiras. É um problema que afeta mulheres ricas e mulheres pobres, um problema que afeta as mais poderosas e as mais famosas, mas também as que têm menos poder e são mais comuns. Na região de África, onde trabalhei durante muitos anos, não existem estrelas de Hollywood e, por isso, os meios de comunicação internacionais não estão interessados nas histórias das pessoas que ali vivem. Não penso que isto nos deva desencorajar, desde que aquilo que aconteceu às mais famosas possa criar um diálogo para toda a gente.
Nesta região, o #MeToo não atingiu as massas, mas levou a que muitas instituições fizessem uma revisão das suas políticas de assédio sexual. Algumas empresas não têm este tipo de políticas, e contactaram-me, a mim e à minha equipa, para as guiarmos no desenvolvimento das mesmas. Nas Nações Unidas, depositamos muita esperança no novo tratado do Internation Labour Organisation, que visa proteger os trabalhadores contra o assédio sexual. Significa que podemos criar diretrizes para todos os países membros do ILO e espalhar uma legislação contra o assédio sexual, da mesma forma que conseguimos fazer com os direitos das crianças. Penso que existiram mudanças graças ao #MeToo, e penso que tal não teria sido possível se o movimento não fosse tão dinâmico.
Nos próximos tempos, as Nações Unidas, como toda a gente, tem que organizar a casa e garantir que as políticas vão para além da repreensão. Se formos confrontados com queixas, temos que responder de forma adequada e tomar as medidas certas, porque as pessoas só vão acreditar que o sistema funciona se virem resultados palpáveis. O escândalo Oxfam e outras crises internas, de grupos de auxílio internacionais, mostraram-nos que as instituições que têm a responsabilidade de serem exemplos de boas práticas e protegerem os mais vulneráveis, por vezes falham no seu trabalho. O setor humanitário tem que trabalhar para voltar a ganhar a confiança que as pessoas depositam nele. Os agressores estão em todo o lado, e em todas as indústrias. Precisamos de estar atentos”.
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Leïla Slimani, jornalista e autora de Lullaby, vencedor do France Prix Goncourt
“Quando ouvi o escândalo sobre o Harvey Weinstein, senti-me revoltada e assustada, mas não posso dizer que me senti surpreendida. Trabalho como jornalista há muitos anos, a fazer a cobertura de temas como o assédio e o abuso sexual, por isso sei que muitas mulheres em todo o mundo estão a sofrer com a violência, tantas vezes em silêncio. O silêncio e a vergonha são as ferramentas mais poderosas do sistema patriarcal. Na França, o #BalanceTonPorc deu às mulheres um senso de solidariedade. Partilhamos experiências e percebemos que somos parecidas, mesmo que não pertençamos aos meus grupos sociais ou tenhamos o mesmo background. Isto assustou muitos homens, mas penso que é algo positivo. Quando fazes algo errado, é bom que te sintas assustado.
Também incentivou um debate sobre a nossa própria identidade enquanto nação. Aqui, as pessoas querem que a França seja um país liberal, em nada parecido com os Estados Unidos da América, onde as pessoas talvez sejam mais púdicas e puritanas. Mas temos que nos questionar, onde é que desenhamos a linha entre liberdade e assédio? Fiquei chocada quando vi a carta aberta no Le Monde, assinada por tantas mulheres, incluindo Catherine Deneuve e Catherine Millet. Se acreditas na liberação das mulheres, devias ouvir todas as mulheres, de todas as gerações. Estas mulheres não queriam que a relação entre homem e mulher fosse vigiada e, para mim, essa não é a questão. Era sobre todas as mulheres, em todo o mundo. Não falo de Paris, nem de Saint-Germain-des-Prés, mas sim de todas as mulheres que estão a lidar com estas coisas terríveis – violência, abuso, discriminação. Naquele momento, tínhamos que nos apoiar umas às outras.
No último ano, tenho visto a atitude das mulheres mudar. Agora, se um homem estiver a ser agressivo, na rua ou no metro, outras mulheres tomam uma atitude e perguntam, ‘Ele está a incomodar-te? O que se está a passar aqui?’. As mulheres sentem-se empoderadas. Não sentem que estão sozinhas. Muitos homens mudaram, também – estão mais conscientes. Não podem continuar a virar a cara ao problema. O próximo passo é continuar a luta e o trabalho, ao lado dos homens, para lhes mostrar que a igualdade é benéfica para todos. Temos que redefinir a masculinidade, da mesma forma que redefinimos a feminilidade”.