The Icons Issue
Francesco Carrozzini, filho de Franca Sozzani, a voz da Vogue Itália dos anos 90, celebra as memórias e o impacto da mãe na indústria, nesta partilha sincera acompanhada do editorial “Caos e Criação”, numa homenagem a uma das figuras emblemáticas do mundo da Moda.
Pensa-se que a Moda é um setor frívolo e a fotografia não lhe fica atrás, mas Franca Sozzani (1950-2016), ex-diretora da revista Vogue Itália, verdadeira visionária do poder da imagem e estrela de editoriais polémicos, ensinou-nos que uma foto, uma campanha editorial, pode ter mais voz do que um texto jornalístico, o poder de dizer tudo sem escrever nada. Podemos acreditar firmemente que a Moda é uma mensagem, o jornalismo é criatividade e a fotografia é consciência, e não, não cometemos um erro na ordem da definição. Franca, uma inspiração, ainda viva na voz do seu filho Francesco Carrozzini, prova que inspirar-se em alguém, inspirar-se em algo, é a âncora da coragem, o adeus à frivolidade.
Colar, Swarovski.
Francesco Carrozzini (42 anos) é o realizador de Franca: Chaos and Creation (2016), a película que é retrato intimista do ícone que lhe dá nome, e que arrecadou o Leão de Ouro para Melhor Curta-Metragem 2008, o U.I.P. Prémio de Melhor Curta-Metragem Europeia 2008, a Melhor Curta-Metragem - Menção Especial 2008, o Grande Prémio Imersivo de Veneza 2018, a Melhor História VR 2018 no Prémio Festival Internacional de Cinema de Veneza e o Prémio Emmy Diurno de Melhor Nova Abordagem 2010. O cineasta italiano, ex-fotógrafo, atendeu a nossa chamada com um grande sorriso, confirmando que nos recebia de Nova Iorque, enfim, da bela casa que tinha criado nos arredores da Big Apple e, rindo, demonstrou o seu nível de espanhol: “por favor, vamos fazer a entrevista em espanhol, quero praticá-lo”. Como espanhola, não lhe podia negar este encontro na minha língua para lhe lembrar os anos que passou em Madrid.
“É muito importante o que se escolhe ou aquilo em que se decide aventurar, o cinema é muito diferente da fotografia ou videoclipes que eu fazia antes, agora são projetos de dois anos ou de um ano e meio”, confessou. O realizador, hoje especializado em cinema e televisão, despediu-se da fotografia há muitos anos. Por que razão Francesco abandonou esta especialidade? “A fotografia é um amor que ainda tenho dentro de mim mas agora não o expresso, preocupo-me mais em contar histórias e dedicar mais tempo a um projeto; a fotografia é mais rápida, que também foi o que mais gostei nela, deu-me uma incrível vida durante 15 anos, viagens, pessoas e experiências, mas agora quero algo diferente, procuro algo mais profundo”, confessa. Naquele momento, compreendemos o artista, procurava estabilidade, falava de família. Francesco, com um filho de dois anos, mudou drasticamente a sua vida. As suas aventuras começaram quando deixou Itália em 2003 e foi para Nova Iorque e, embora tenha passado alguns anos em Los Angeles, a vida trouxe-o de volta a Nova Iorque. Agora, da periferia, confessa que não precisa daqueles estímulos que a cidade lhe deu durante 20 anos. Carrozzini voltou a confirmar que uma das coisas que o fez decidir-se pelo cinema foi ter a oportunidade de contar histórias, algo que a fotografia normalmente não permite. A sua mãe, Franca Sozzani, certamente não concordaria com isso.
À esquerda: Colar, Swarovski. À direita: casaco e luvas de outono/inverno de 2022, Juana Martín Alta-Costura. Collants, Calzedonia.
Sem pensar, lançámos um desafio criativo ao artista: e se ele voltasse a ter uma máquina fotográfica nas mãos e a oportunidade de dar voz a um problema atual através da moda como a sua mãe fez? A que tema gostaria de dar visibilidade? “Adorava fazer um livro, pelo motivo anterior de contar uma longa história, não sei se falar sobre um problema, talvez me interessasse falar mais de uma pessoa, contar histórias através de pessoas. A minha mãe inspirou-se em causas, em política; eu sou inspirado pelas pessoas. Está sempre tudo ligado às personagens, tenho interesse em contar mais a vida das pessoas do que os seus problemas. A fotografia, tal como a minha mãe a interpretava, tinha um fundo sintético. A minha mãe tinha uma consciência social muito forte, estava interessada nesse objetivo. Para mim, é mais sobre a vida das pessoas e o que elas escondem e inspiram. Agora, numa altura em que tudo é direita ou esquerda, branco ou preto, hetero, gay, estamos em anos muito perigosos e de grandes divisões, interesso-me por histórias que possam perdurar no tempo e não tenham um rótulo imposto. Somos pessoas muito diferentes que partilham coisas semelhantes: medo, amor, sonhos...”. Franca Sozzani, a sua mãe, não se esquivou às questões políticas, e Francesco falou sobre o assunto. “Ela interessou-se muito por política, eu interesso-me mais pela psicologia das pessoas e acho que há problemas graves, tenho muita empatia e para mim é muito difícil dar razão apenas a uma das partes. Lutar por uma causa é muito difícil, ambos os lados de uma causa são muito frágeis.”
À esquerda: Casaco de outono/inverno de 2022, Juana Martín Alta-Costura. Collants, Calzedonia. À direita: Robe, For Restless Sleepers. Brincos e colares, tudo Swarovski. Adrián: camisa, calças e camisola (na mesa), tudo Tommy Hilfiger. No manequim: vestido réplica dos anos 50, Cristóbal Balenciaga Alta-Costura do Museu del Traje (Madrid).
Franca Sozzani morreu em dezembro de 2016, depois de ter sido diagnosticada com cancro do pulmão. A última edição da Vogue Itália que assinou foi em fevereiro de 2017. Alguma vez usou o título italiano para dar visibilidade à sua doença? “Ela nunca fez isso, não queria que ninguém soubesse que estava doente. Nos últimos meses começou a parecer fraca, doente; mas não, ela queria continuar a ser ela, queria ir embora ainda jovem.” Disse. Como foi para Franca, e mesmo para si, Francesco, lidar com o facto de ter um grande cargo em simultâneo com esta doença nesse último ano, na Vogue Itália? “Tento pensar nisso agora, lembro-me dela e vejo uma pessoa tão confusa que não sabia o que estava a acontecer. É muito difícil teres controlo sobre um momento tão grande da tua vida; não é só estares a perder a tua mãe, a tua vida está a mudar completamente. Como digo aos meus amigos: há duas coisas na minha vida que foram gigantes, a morte da minha mãe e o nascimento do meu filho. Não há nada mais importante. Quando algo tão grande acontece na tua vida é preciso muito tempo para o compreender. Eu precisava de tempo, apenas sobrevivi. É preciso fazer isso, não há mais nada, e agora se me acontecesse algo assim na minha vida... saberia sobreviver com mais controlo, mas aquele momento foi um tornado”.
Vestido de outono/inverno de 2022, Juana Martín Alta-Costura. Anel, Swarovski. Sapatos, Jimmy Choo. Adrián: camisa, calças e sapatos, tudo Tommy Hilfiger. Jarras, Agoko.
A força da sua mãe era ainda assim incomparável: depois de conviver com a doença ao longo de menos de um ano, manteve-se à frente da Vogue Itália até ao fim. “Nunca deixou de trabalhar, tinha muita vocação e carácter”, partilhou com um gesto de ternura. Franca disse em entrevista: “o meu talento era encontrar pessoas muito talentosas”. Uma frase na voz da sua mãe - duvidamos muito que alguém discordasse dela -, foi sem dúvida incomparável na descoberta de talentos, mas o maior deles foi o seu. Tinha muito orgulho no percurso escolhido pelo filho, mas como profissional, a mãe dele apostou no trabalho dele? Vimo-lo em alguns números, como em setembro de 2014 a fotografar Shirin Neshat, por exemplo. “A Vogue Itália era como uma família, era um círculo cool. Lembro-me que quando tinha 5 ou 6 anos, no escritório onde trabalhavam, fazia a minha própria revista, não se chamava Vogue, era uma coisa diferente, não me lembro do nome que lhe dei. Recortei fotografias, fiz colagens, era o que sabia e fiz. Vogue Itália, uma família e um lugar onde sempre me senti muito bem, uma segunda casa”, confessou. “Com a perda da minha mãe deixei de trabalhar com eles, acredito que a vida são capítulos e momentos e esses momentos acabam, uma nova vida começou com a sua morte e é algo necessário. Há coisas negativas na morte dos pais, mas também há coisas boas; estamos entre paredes, protegidos pelos nossos pais, eles estão sempre aqui... senti-me muito só, mas também completamente livre, já não tinha ninguém que me dissesse o que devia e não devia ser feito; é algo horrível, mas também tem coisas positivas. A minha mãe disse-me muito o que eu tinha de fazer, mas não mais do que os outros pais.” Depois de o ouvirmos, quisemos saber como está agora, está feliz? “Foram anos muito difíceis, perdi o meu pai em 2011 e a minha mãe em 2016. Os primeiros três, quatro anos foram muito complicados e, talvez, de uma forma diferente, deveria agora confrontar tudo e viver com essa grande parte emocional do que aconteceu, mas agora que tenho um filho, é o amor da minha vida. Tenho um amor infinito pela minha mãe, mas o amor pelo meu filho é algo completamente diferente e que não se compreende até se viver, é um amor inexplicável”, transmitiu com os olhos lacrimejados.
À esquerda e à direita: blazer, saia e sandálias de outono/inverno de 2005, tudo Armani Privé Alta-Costura. Collants, Calzedonia. Brincos e colar, Swarovski. Ao centro: vestido vintage, dos anos 70, e cachecol, Loewe.
Perguntámos-lhe sobre a pessoa que tinha deixado na sua cidade natal, Monza, a sua tia Carla Sozzani; partilhou comigo que é uma grande mulher, criativa e interessante, muito curiosa, e Francesco é fascinado por pessoas assim. Confessou que durante o período da doença da mãe foi quando compreendeu a importância de se ter uma família; apesar de ser filho único, teve-a a ela, esteve sempre lá e continua a estar. Agora, mantém a união forte, apesar de estarem separados por milhares de quilómetros. Franca Sozzani e Carla Sozzani têm atualmente uma livraria, galeria e fundação em Milão, cidade italiana próxima do Festival Internacional de Cinema de Veneza, onde Francesco apresentou, em agosto, o documentário dedicado à sua mãe, que completa oito anos - Franca: caos e criação -, um título inspirado na fotografia de Philippe Halsman - Salvador Dalí e um rinoceronte - de 1956.
À esquerda: vestido réplica dos anos 50, Cristóbal Balenciaga Alta-Costura do Museu del Traje (Madrid). Colar, pulseiras e anel, tudo Swarovski. Ao centro e à direita: vestido vintage, dos anos 70, e cachecol, Loewe.
Franca confiava implicitamente nos seus artistas, fotógrafos visionários como Peter Lindbergh, Steven Meisel e Bruce Weber. “A imaginação profunda de Franca baseava-se no drama, na ironia, na história, na ambição e na sensação de que a Moda significava mais do que as roupas na passerelle”. Falando a Francesco sobre os grandes companheiros da sua mãe e os grandes fotógrafos que hoje perduram no tempo, assim que menciono a figura de um deles - Peter Lindbergh -, interrompeu: “O Peter será sempre mais uma grande dor na minha vida, era tão jovem, tão bom, era um homem tão generoso, era muito especial, era como se fosse o meu segundo pai. Era brilhante, emotivo, era mais realizador de cinema do que fotógrafo, dava sempre emoção às personagens e na sua fotografia, muito do que sei, aprendi com ele, o meu professor. Ainda tenho contacto com Bruce Weber, amigo da minha família e grande fotógrafo, duas vezes por ano encontramo-nos para ver se estamos bem, mas por outro lado, nunca tive uma relação com Steven Meisel, não posso dizer que é alguém que conheço bem. Paolo Roversi, um grande amigo e uma estrela da fotografia. Tudo era uma grande família com os fotógrafos, uma relação de 30 anos com todos e eram pessoas com uma liberdade muito importante porque essa grande liberdade criativa só se encontrava na Vogue Itália. A minha mãe apresentava-o como uma ‘arte segura’, de criatividade, de todas as pessoas tão importantes e do meu querido Peter... Tenho muitas saudades do Peter, tenho muitas saudades dele”, confessou com lágrimas nos olhos. Foi um momento difícil, não imaginávamos o que Francesco estaria a sentir, a grande admiração por Lindbergh foi sempre muito especial, uma inspiração, saber que para além de ser um artista lindíssimo, era uma pessoa lindíssima, foi comovente. Queríamos dar-lhe novamente uma lembrança feliz do fotógrafo, por isso partilhámos uma história sobre Peter na cidade de Madrid, que ouviu com ternura. Não fazia ideia, mas o seu amigo e família, há mais de 12 anos, num dos maiores estúdios de Madrid, o Q17, fotografou influentes perfis espanhóis - como Nieves Álvarez - e contou novamente uma história através das suas fotografias a preto e branco. “O Peter tinha uma magia na sua fotografia, de emoção, conseguia fazer coisas que os outros fotógrafos não conseguiam, eram personagens, via-se o que pensavam e sentiam, era tão, tão interessante. E... é preto e branco, aquele preto e branco, o mais bonito do mundo, 35 mm, que incrível.”
À esquerda: Blazer, saia e sapatos de outono/inverno de 2005, tudo Armani Privé Alta-Costura. Collants, Calzedonia. Brincos e colar, Swarovski. Jesús: camisa e calças, Giorgio Armani. Relógio, Cartier. Anel vintage, Joyas Antiguas Sardinero. À direita: Vestido, carteira e sapatos, tudo Schiaparelli Alta-Costura. Colar, Swarovski. Mesa, Agoko.
“A Vogue, prefiro pensar nela e guardar as coisas positivas dos meus anos, todo este mundo acabou para mim, não vejo as revistas e tenho consciência que ainda estou nesse mundo, é uma realidade; é a minha família atual e interessa-me, mas não quero saber mais agora, quero ficar com o tempo da minha mãe. A Vogue Itália, os desfiles, os anos 80 e 90, os bastidores da Versace e uma muito jovem Naomi Campbell”, continuou a recordar momentos gloriosos da moda. “Quero lembrar-me de 94 ou 95, uma noite com o cantor Prince no concerto de Gianni Versace com Shalom Harlow, tinha eu uns 14 anos. Quero ficar com estes momentos, e influenciaram-me a decidir a minha profissão, fiz o que fiz porque estava naquele mundo, interessei-me pelo que estava a viver, agora interesso-me por outras coisas, já não sei nada sobre a indústria”, confessou.
A indústria editorial, após a saída da sua mãe, mudou, mas depois da pandemia mudou ainda mais. O ano com mais trabalhos, recorda o artista, foi pouco antes da pandemia, 2018. Depois de perceber que não havia futuro na forma como queria fazer este trabalho, fez um filme e depois veio a Netflix e a série Supersex (2023), um novo capítulo da sua vida em que está há vários anos e com ele se despediu deste encontro tão especial onde se comprova que Francesco Carrozzini é a voz viva da Vogue italiana dos anos 90, a era da “arte segura” de Franca Sozzani.
Blazer e saia de outono/inverno de 2005, Armani Privé Alta-Costura. Collants, Calzedonia. Brincos e colar, Swarovski.
A Vogue Portugal agradece à Fondazione Sozzani, Museo del Traje, Pilar Ilusión e Caniches Pet Grooming todas as facilidades concedidas.
Publicado originalmente na edição "The Icons Issue" da Vogue Portugal, de novembro 2024, disponível aqui.