Hoje, mais do que nunca, a liberdade é a essência e o sustento da minha geração. Num mundo hiperconetado e hipersensível, velamos por ela e atribuímos-lhe as nossas interpretações enquanto redescobrimos novos significados para o conceito de prisão.
Hoje, mais do que nunca, a liberdade é a essência e o sustento da minha geração. Num mundo hiperconetado e hipersensível, velamos por ela e atribuímos-lhe as nossas interpretações enquanto redescobrimos novos significados para o conceito de prisão.
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© Rebecca Reeve
© Rebecca Reeve
“A liberdade era uma coisa comum, quase sem importância. Toda a gente era livre de fazer o que quisesse desde que não fizesse mal a ninguém, e isso era tão normal que as pessoas nem davam pela liberdade. Eram livres do mesmo modo que respiravam e ninguém dá conta que respira, respira e pronto.” Ninguém dá conta que respira, respira e pronto. Esta é uma passagem do livro O Tesouro, de Manuel António Pina, que me ficou impressa na memória. Posto isto, estaria a mentir se dissesse que é fácil dissertar acerca do conceito de liberdade. Não só pelas suas infinitas nuances e abordagens possíveis, mas porque a verdade é que, até à data, nunca me deparei com essa necessidade mesmo por me achar inquestionavelmente livre. Ou, pelo menos, livre q.b.
É impossível não referir que escrever sobre liberdade quando me encontro impossibilitada de sair de casa numa situação sem precedentes e ligeiramente assustadora, é no mínimo curioso. E aqui estou eu. Aqui estamos nós, hoje, a tentar decifrar o significado de ser livre. Neste momento, e para mim, ser livre é uma aula de Pilates in loco, é uma ida casual casual ao supermercado, é uma jantarada em casa das amigas, é um espetáculo de música, teatro ou humor, é uma viagem de avião para Itália. Aprendi que sem lugares e sem pessoas, as nossas experiências não apontam para nada que seja tangível.
Quando faço o exercício de pensar quando é que me sinto ou senti mais livre, a resposta está em quando tomei decisões que refletiam a minha vontade pessoal, o viver a vida nos meus próprios termos. Senti-me livre quando decidi vir estudar e viver para Lisboa, em 2013, quando aceitei ir de Erasmus para a Hungria, quando viajei sozinha para longe, quando me mudei para Londres para perseguir o meu sonho, quando aluguei a minha primeira casa, quando mudei de trabalho. Viver uma vida com significado e que seja gratificante para mim, isso é ser livre.
Ser livre é poder desfrutar de tempo de qualidade com as pessoas de quem gosto e, ao mesmo tempo, ter um trabalho que me preencha criativamente e ofereça liberdade financeira. Também significa ter tempo e flexibilidade para me ocupar com coisas que me dão prazer e são do meu interesse, o que infelizmente choca com o facto de vivermos numa cultura, quanto a mim insustentável, do chamado hustle porn. Ou seja, glorificar longas e excessivas horas de trabalho e desvalorizar o tempo de lazer e os fins de semana de cada um. Os limites entre trabalho, lazer, alimentação e sono têm-se tornado demasiado confusos para os jovens da minha idade. Onde é que começa e acaba cada parte da nossa vida é uma questão à qual eu, pelo menos, não tenho capacidade de responder. A liberdade tem, por isso, muitas perguntas.
Ser livre é sentir-se confiante para dizer não. Ser livre é lidar com os nossos erros e sucessos sem precisar de responsabilizar ninguém por nenhum dos dois, a não ser nós mesmos. Liberdade pode ter tantos significados e não me cabe a mim esmiuçá-los exaustivamente. Mas é preciso reconhecer que eu, Mathilde, sou livre porque sou privilegiada. Porque se eu partilhar com o mundo a minha verdade, haverá alguém a ouvi-la e a respeitá-la. Outras pessoas não têm esse privilégio. De falar sem pedir autorização. De dizer NÃO deliberadamente. De escolher. Há pessoas no mundo que não podem levantar a voz quando falam. E há outras, como eu, que podem gritar se assim o desejarem.
É uma ilusão pensar que todos vivemos em liberdade em 2020. E é difícil ver além do próprio umbigo quando estamos imersos numa cultura de espetacularização da existência, que encoraja a partilha constante da nossa imagem, da nossa realidade, daquilo que estamos a fazer, onde e com quem. Eu, eu, eu. A Internet é sem dúvida o maior e mais recente elemento disruptivo dos tempos modernos. Que impacto é que esta teve na nossa liberdade? Antes de fazermos sign up no Instagram, a única plataforma que tínhamos para nos dirigirmos a uma audiência, independentemente do seu tamanho, era através de uma apresentação oral na escola ou da representação numa peça de teatro.
Mas a questão que me preocupa, para além do meu tempo de ecrã completamente absurdo, é como é que posso ser livre se não consigo tirar proveito da tecnologia e dos ecrãs quando estes são realmente úteis e rejeitá-los quando não são? Se não consigo organizar o meu dia sem que este se baseie numa passagem de ecrã em ecrã? A Internet e as redes sociais, a era da informação, a era da economia de acesso em que podemos ter tudo – desde comida, cultura, roupa – entregues à porta de nossa casa são uma benção e uma maldição.
Os psicólogos tendem a atribuir a ansiedade e a depressão de muitos jovens ao tempo que despendem a publicarem-se a si mesmos nas redes sociais ou a compararem-se com os demais, enquanto que muitos de nós vemos as redes como plataformas que oferecem um escape imediato do ambiente que nos circunda, oferecendo-nos liberdade para pensar, entre outras coisas, sobre sexualidade, género, raça e auto-expressão. Essa é a benção. Somos livres de dar a nossa opinião sem que ninguém a tenha requisitado, livres de exprimir aquilo que sentimos e de mover massas em prol daquilo que defendemos, mas, por outro lado, estamos presos a um ecrã onde uma grande percentagem do conteúdo que consumimos é pura e simplesmente lixo. E esta é a maldição. O que é que significa estar inativo nos tempos que correm? E estar desconectado numa era de hiperconectividade avassaladora e descontrolada? Estar inativo pode significar uma série de coisas, como ler, ver uma série, organizar o armário por cores; não interessa a atividade, interessa apenas que não se sinta a necessidade de a partilhar no Instagram ou registá-la numa aplicação.
Quando penso no aparato à volta das redes sociais e, sobretudo, quando me interrogo acerca do meu verdadeiro interesse por mais de metade das pessoas que sigo, aborreço-me e desisto. A verdade é que, embora nos queiram erradamente induzir a pensar que temos de estar sempre a par do zeitgeist, não precisamos de conhecer os meandros de todas as controvérsias do Instagram ou estar na vanguarda de todos os memes e tweets, para nos consideramos pessoas informadas e muito menos para a nossa existência ter significado. Costumo dizer que o mundo não (nos) quer estar sempre a ouvir. Por vezes queremos silêncio. Como é possível ter sempre algo para dizer ao mundo, isto é, à nossa pequena audiência?
Enquanto jovens, sabemos que os nossos pais e avós lutaram por tantas das nossas liberdades básicas: a liberdade de nos expressarmos, de nos manifestarmos, de nos movermos, de escolhermos as nossas profissões, de conhecermos outras culturas. Lutaram pela nossa liberdade de escolher. Lutaram pela nossa liberdade de votar. Lutaram para podermos pensar e dizer o que queremos e não pensar e dizer o que alguém quer que nós pensemos e digamos. E hoje nós lutamos pela nossas pequenas liberdades, que diferem consoante os contextos socioeconómicos em que vivemos. Lutamos pela liberdade de sermos quem quisermos e vestirmos o que quisermos, lutamos pela igualdade de género, raça, orientação sexual, religião, lutamos contra a discriminação. Lutamos para que possamos ser livres de forma responsável, mas sem o julgamento e olhar crítico do outro. Talvez, daqui a muitos anos, os nossos filhos e netos possam recordar as nossas conquistas (como o Pride Month, por exemplo) da mesma forma, como um tesouro valioso que têm de proteger, preservar e respeitar. Quando somos confrontados com o imperativo do ódio, por via de forças políticas que conquistam o poder e proclamam tudo o que é inimigo da liberdade, da alegria, do consenso e do júbilo, estamos exatamente a declarar a urgência desta consciencialização.
Diz-se que no tempo da ditadura qualquer pessoa vivia com medo. Os jornalistas, por exemplo, nunca sabiam se iam chegar a casa ao fim do dia ou se seriam presos pela PIDE. Nos jornais, mais de metade do que era escrito era riscado com o famoso lápis azul e, para cobrir os espaços em falta, os jornalistas eram obrigados a colocar imagens ou a abordar temas banais. Muitos caraterizam o dia 25 de abril de 1974 como o dia mais feliz das suas vidas. A minha avó materna, que infelizmente já não está entre nós, nasceu em 1924. No ano da revolução tinha exatamente 50 anos. Quando eu tinha 12 anos, e era apenas uma pré-adolescente, ela tinha 83. Por isso, há várias coisas que ela dizia que eu não compreendia muito bem, mas uma delas ficou comigo: “O 25 de abril deu liberdade, mas não deu responsabilidade”. É certo que esta afirmação poderá não ser consensual, mas a minha avó era uma mulher bastante séria e religiosa.
Temos de nos lembrar que a população daquela altura não tinha nada a ver com a população portuguesa atual. Era maioritariamente rural, analfabeta e obviamente muito influenciada pela Igreja Católica. A Igreja e o Estado Novo tinham uma matriz doutrinária e ideológica comum e já se provou que a ditadura é quase sempre apoiada pela hierarquia da Igreja. A verdade é que as mentalidades são o que mais demora a mudar. Demoram a fixar-se e depois demoram muito a transformar-se. Por outro lado, a minha geração está ligada a um humanismo e sensibilização que não existiam há 40 anos. Isto da responsabilidade, que a minha avó referia tantas vezes, leva-me a outra questão: devemos ter permissão para dizer tudo o que quisermos sem repercussões? Os ativistas da liberdade de expressão estão por toda a parte e o que devemos ou não dizer é um debate aberto. A linha entre permitir a liberdade de expressão das pessoas e impedir o discurso de ódio que hoje presenciamos nas redes sociais tem-se revelado um pouco tremida, mas precisa de ser traçada, porque as consequências de permitir que as pessoas digam o que querem quando querem, são muito graves.
Para concluir, seria maravilhoso se todos tivéssemos um espírito livre em igual medida. Mas é impossível. Essa mentalidade desafiadora também pode ser chamada de luta contra o absurdo, a injustiça e o poder. Não se pode travar essa batalha sem liberdade. A liberdade, de uma forma geral, é a porta de entrada para questionar o consenso e desafiar o que nos é apresentado como verdade. Ou, para usar as palavras do escritor e jornalista José Jorge Letria, “A liberdade é um livro sempre aberto na página ainda por escrever.”
Artigo originalmente publicado na edição de abril 2020 da Vogue Portugal.
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