Em 1966, Yves Saint Laurent visitou Marraquexe pela primeira vez. O impacto foi tal que o criador percebeu que era ali, naquela cidade do Norte de África repleta de souks labirínticos, que estava o seu santuário criativo. Mesmo sendo avesso a viagens, o designer regressou uma e outra vez, até a sua obra se confundir com as influências marroquinas — os cheiros, os tons, a natureza, a arte —, num diálogo que dura até hoje. Apesar da sua morte, em 2008, a história de amor entre Yves Saint Laurent e Marrocos continua no Vale de Ourika, às portas do Atlas, onde se planta o futuro da beleza e da sustentabilidade.
Em 1966, Yves Saint Laurent visitou Marraquexe pela primeira vez. O impacto foi tal que o criador percebeu que era ali, naquela cidade do Norte de África repleta de souks labirínticos, que estava o seu santuário criativo. Mesmo sendo avesso a viagens, o designer regressou uma e outra vez, até a sua obra se confundir com as influências marroquinas — os cheiros, os tons, a natureza, a arte —, num diálogo que dura até hoje. Apesar da sua morte, em 2008, a história de amor entre Yves Saint Laurent e Marrocos continua no Vale de Ourika, às portas do Atlas, onde se planta o futuro da beleza e da sustentabilidade.
"Yves era um hedonista”, lança-me Laurence Benaim, em jeito de confissão, horas depois de termos feito a entrevista acordada antes da viagem. Estamos sentadas numa mesa redonda, rodeadas de copos de vinho, tagines e boa disposição, já não há entraves nem “questões pré-aprovadas.” Ela, enquanto jornalista e biógrafa oficial de Saint Laurent, tem histórias para contar que dariam para mil e uma noites, mas para já ficamo-nos pelo que pode ser publicado. Comento que esta edição da Vogue Portugal será dedicada ao hedonismo, que a coincidência deste encontro nos pareceu interessante porque, para todos os efeitos, Yves Saint Laurent era um hedonista. “Sim. Era. Totalement... Mais oui!” A vida do couturier francês está repleta de alegrias, de desilusões, de dramas, de triunfos, de derrotas. Mas era precisamente a busca constante do prazer — ou, se preferirmos, de um ideal de prazer — que o guiava. Brilhante, ousado, vanguardista, soube sentir o espírito dos tempos (“l'air du temps”) e apontar o caminho do futuro. A sua estética mudou para sempre o mundo da Moda, deixando um legado de virtuosismo — um legado que começa com a introdução das calças no guarda-roupa feminino e termina na socialização da Alta-Costura, com a criação da sua boutique de pronto-a-vestir. Curiosamente, uma das etapas mais importantes da sua história escreve-se em Marrocos, longe do glamour das Semanas de Moda e do rebuliço de discotecas como o Le Palace ou os Bains-Douches.
“Quando descobri Marrocos, percebi que a minha própria paleta de cores era a dos zelliges, zouacs, djellabas e kaftans. A ousadia do meu trabalho, desde então, devo-a a este país, à sua harmonia pujante, à suas combinações arrojadas, ao fervor das suas criações. Esta cultura tornou-se minha, mas não me limitei a absorvê-la, peguei nela, transformei-a, adaptei-a.” Yves Saint Laurent descobriu Marrocos em 1966, quando tinha 33 anos. “A minha primeira vez em Marraquexe foi como que um abanão: a cidade abriu-me os olhos para a cor”, afirmou após a primeira visita à cidade. Foi um coup de foudre, sim, mas foi, acima de tudo, uma revelação estética: o designer apaixonou-se por um país banhado pela luz, pelas suas cores vibrantes e pela sua cultura, tão diferente da azáfama parisiense. O efeito foi imediato. Yves soube que aquele seria o seu refúgio, o seu santuário criativo, tal como tinha sido para Delacroix e Matisse. Com a ajuda de Pierre Bergé, seu companheiro de vida e de trabalho, transformou os magníficos Jardins Majorelle num reduto de felicidade e comprou uma casa, para onde se deslocava sempre que precisava de inspiração. A inauguração de um museu com o seu nome, em 2017, apenas serviu para eternizar a sua relação com a cidade, abrindo as portas ao riquíssimo espólio do designer. E se estes “antecedentes” podem ser mais ou menos conhecidos do público geral, há uma outra parte da narrativa, menos famosa, que também merece ser contada. A que diz respeito aos avanços que a Yves Saint Laurent Beauté tem feito em termos de cuidados com a pele e com a beleza graças aos poderes (especiais) dos Jardins Comunitários de Ourika. É para dar a conhecer esse trabalho que todos os anos se realiza esta viagem — entendida como um “encontro mundial” de amigos da maison —, onde se explicam, em primeira mão, os projetos em que a marca está envolvida. Laurence Benaim é uma das peças-chave desta reunião anual, pela relação privilegiada que manteve com o criador. Mas já lá vamos.
São uma das formas mais eficazes para pôr em prática a intenção de “devolver” (“give back”) à terra e às comunidades parte daquilo que delas retira. Inovadores e socialmente responsáveis, os Jardins Comunitários de Ourika foram inaugurados pela Yves Saint Laurent Beauté em maio de 2019 e rapidamente se tornaram numa das mais importantes fontes de inspiração da marca no desenvolvimento de maquilhagem e cuidados de pele. Criados como um laboratório a céu aberto, avaliam o impacto da produção na região sobre a biodiversidade e servem como “oficina” para aperfeiçoar novas (melhores e mais sustentáveis) formas de obter ingredientes naturais. A dois passos do Atlas, que se ergue como um curioso espião de cumes cheios de neve, são o lar de 40 espécies botânicas, agrupadas numa harmonia que espelha o imenso carinho e dedicação que estiveram por detrás da sua construção — para a qual foram necessários quatro anos e a ajuda de paisagistas, cientistas e peritos agrícolas, que ajudaram a “desenhar” estes jardins, onde agora nascem milhares de rosas, limoeiros e o maravilhoso geranuium rosat, que além de ter propriedades regenerativas (apaga as imperfeições da pele e devolve o brilho à tez) possui um dos aromas mais agradáveis que já cheirámos. Mas os Jardins Comunitários de Ourika não são apenas um deleite para os sentidos. Ao fazerem a ponte com a comunidade local, empregando dezenas de mulheres que estariam, de outra forma, desempregadas, reforçam os laços deste grupo e garantem que o espírito de empoderamento, que sempre esteve associado ao ADN da marca, se prolonga a outras áreas para além da Moda. “Este jardim tem uma visão epicurista. Transmite uma visão muito epicurista do mundo. Mas vemos as pessoas a trabalhar e é algo muito orgânico”, diz-me, a dada altura, Laurence Benaim. Recordamos traços da revolução hedonista que foi a vida de monsieur Saint Laurent, e concluímos que, de facto, parte da sua herança consegue ter esse lado mais moderado, mais ponderado, do epicurismo. É aqui, nestes campos verdes entre o Altas e o infinito do horizonte, que se cultivam muitas das plantas e flores essenciais para a formulação de produtos como o famoso iluminador Touche Éclat. O objetivo é sempre o mesmo: deixar mais do que se tira. Entre as várias estratégias de sustentabilidade levadas a cabo pela Yves Saint Laurent Beauté, destaque para Rewild Our Earth, lançado em parceria com a ONG global Re:wild, um programa ambicioso que visa proteger e restaurar, até 2030, cerca de 100.000 hectares da superfície do planeta.
O fascínio de Yves Saint Laurent por Marrocos tinha tudo para não acontecer. Consta que, da primeira vez que visitou o país, choveu durante toda a semana, razão mais do que suficiente para desanimar alguém que não gostava de viajar e era propenso a mudanças de humor. Não aconteceu. Laurence Benaim tem uma teoria: “Penso que a afinidade vem pro- vavelmente da sua infância, porque aqui, na medina, ele podia sentir a atmosfera que tinha em Oran [Argélia, onde nasceu], mas ele vem de uma família muito rígida, que tinha muitos tabus e visões muito convencionais da vida. Aqui tinha a sensação de estar de volta ao Norte de África, de onde provinha, mas também tinha a ideia de que podia reinventar-se através de uma visão orientalista. Era muito importante para ele ter este tipo de identificação, e através destas afinidades estéticas podia exprimir-se. Era algo entre a realidade da terra e a sua imaginação.” E continua: “Trata-se de criar. O que ele tirou de Marrocos é também o que ele deu a Marrocos. Não se trata de apropriação cultural nem de uma espécie de recriação de um Marrocos colonial, trata-se de um diálogo. É um diálogo entre algo que está cá há séculos e algo que está ligado a instantes de felicidade.” Efetivamente, todos os relatos dão conta da enorme felicidade sentida por Yves Saint Laurent em Marrocos — mesmo nos períodos mais negros da sua vida. Foi num desses períodos que Benaim o conheceu. “Eu era uma jovem jornalista no Le Monde e fui enviada para um desfile do Yves porque ninguém queria ir. Tinha uma chefe terrível e ela disse-me ‘Ok, podes ir ao Saint Laurent, ele está acabado’, então eu fui e tive uma espécie de revelação. Foi muito emotivo para mim. Quando vi as cores dele, pensei: ‘Este homem está louco?!’ Porque o verde dele, o turquesa dele, eu nunca tinha visto nada assim, foi uma espécie de choque. Escrevi o meu primeiro artigo, ele escreveu-me uma carta e foi uma espécie de autorrevelação, porque depois comecei a documentar todas as coleções e comecei a ir com muita frequência ao atelier.” O verde e o turquesa de que Laurence fala eram as cores quentes que o designer tinha trazido de Marraquexe.
Opium. Libre. Paris. Rive Gauche. Os perfumes Yves Saint Laurent são o espelho do homem que a imprensa apelidou de “principezinho” (quando era assistente de Christian Dior), para logo se aperceber que este teria talento e génio de sobra para voar sozinho. Opium. Libre. Paris. Rive Gauche. Tudo nomes fortes, que ficam na retina, e que têm em comum o sentido de liberdade e de revolução que Yves defendeu — Rive Gauche, lançado em 1971, é provavelmente a primeira memória que associo a fragrâncias; o magnífico frasco em alumínio, com riscas prateadas e azul cobalto, desenhado por Pierre Dinand, um hino ao design, descansava na cómoda da minha mãe quando era criança, para meu gáudio. Curiosamente, não existe nenhum perfume chamado Hédonisme, que fecharia de forma brilhante a história de um criador que sempre procurou a beleza e o prazer. “Quando se fala em Yves Saint Laurent, pensa-se sempre no esplendor de Yves Saint Laurent, na glória, etc., mas ele teve vários momentos em que teve de lutar: quando estava na Dior, quando chegou Paco Rabanne e Courrèges... Era demasiado jovem, demasiado velho... Quando lançou a coleção Libération... Teve de lutar contra o tabu, contra a intolerância, teve de lutar contra o ódio, contra o establishment. Ele foi o último imperador mas nunca esteve satisfeito consigo próprio, teve sempre um sentimento de insegurança, mas essa insegurança foi a chave para ele avançar, para procurar sempre.” O comentário de Laurence Benaim encerra essa ideia de um artista que nunca confiou no sucesso para ignorar a descoberta de novos mundos — tal como, atualmente, a Yves Saint Laurent Beauté faz em Ourika. “Ele era a expressão máxima da sensibilidade, pura sensibilidade. E sensibilidade não é sinónimo de fraqueza. Sensibilidade como força e vulnerabilidade — ser, ao mesmo tempo, masculino e feminino. Acho que ele foi uma das pessoas que mais compreendeu a mulher. Ele era uma pessoa muito emotiva, mas é tão cliché dizer isso agora...” Talvez não seja. O universo está cheio de coincidências felizes (os ingleses têm uma expressão para isso, “serendipity”), e muitas ajudam a explicar os encontros (de Yves com Marrocos, de Laurence com Yves) que parecem não ter explicação. Em 2008, Laurence estava num táxi, a caminho do velório de Saint Laurent, com Albert Elbaz, entretanto também desaparecido. Vestia um casaco que herdou da mãe, que pertencia a uma das coleções mais aplaudidas do criador, Ballet Russes (1976). “Quando a roupa não era tão cara”, apressa-se a explicar. Ao sair do carro, esqueceu-se do casaco, uma das peças que mais acarinhava. Nunca mais o encontrou. Digo-lhe que foi uma forma de o casaco “prosseguir viagem.” Ela acena-me com um sorriso. Aqui está uma hipótese com a qual Yves, um sonhador inveterado, concordaria.
Publicado originalmente na The Pleasure Issue, lançada em maio de 2023.
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