Opinião   Suzy Menkes  

Karl Lagerfeld, um ano depois

19 Feb 2020
By Suzy Menkes

Amanda Harlech, Silvia Venturini Fendi, Claudia Schiffer, Carla Sozzani e Hubert Barrère partilham as suas memórias da inimitável força da Moda, Karl Lagerfeld - conforme relata Suzy Menkes.

Amanda Harlech, Silvia Venturini Fendi, Claudia Schiffer, Carla Sozzani e Hubert Barrère partilham as suas memórias da inimitável força da Moda, Karl Lagerfeld - conforme relato a Suzy Menkes.

Faz um ano desde o falecimento de Karl Lagerfeld, que deixou para trás um enorme legado presente na memória dos seus amigos e colegas na Chanel, Fendi e na sua própria marca. 

Quando conversámos extensivamente em Paris, no ano anterior à sua morte, não sabia que esses seriam os nossos últimos encontros. "Eu tenho a indústria da Moda, tenho livros de fotografia e publicações - já chega! Eu gosto de assistir o mundo, mas não quero ser assistido”, explicou-me.

Ao descrever o seu mundo pessoal e privado em casa, onde estava cercado por, estima-se, 100.000 livros, disse: “Adoro a presença física dos livros e mal posso chamá-lo de quarto porque derrubei todas as paredes. É como uma enorme caixa de vidro fosco - sem portas, apenas um enorme estúdio onde eu desenho, leio e a Choupette vive”, disse-me. O gato branco com olhos cor de safira leva agora uma vida confortável com uma das empregadas de Lagerfeld.

Lagerfeld sempre foi ferozmente independente, um verdadeiro solitário. "Eu não sou francês e nunca pretendi tornar-me francês, porque gosto de ser um estranho", disse-me. "Eu sou um estranho na Alemanha. Eu nunca quis fazer parte de algo do qual não conseguia fugir. Eu gosto de ser um estranho. Na verdade, não sou parte de nada. Sou totalmente livre no melhor sentido da palavra.”

Karl Lagerfeld e as cinco irmãs Fendi © Getty Images
Karl Lagerfeld e as cinco irmãs Fendi © Getty Images

Falava ocasionalmente sobre os seus pais, dizendo: “O meu pai era uma pessoa muito simpática, muito gentil, mas não era tão engraçado como a minha mãe. Então às vezes sentia-me culpado por não ser tão gentil com ele como com ela.”

Ao ouvir Lagerfeld falar sobre a sua vida e aqueles que trabalharam com ele, a história é a de um grande amor com a moda criativa.

Tenho muitas memórias de Lagerfeld - aquela vez em que saímos numa noite parisiense e ele abanava o leque em frente ao seu rosto; depois de um jantar privado em Nova York, quando dançou com Oscar de la Renta; ou uma vez, em Paris, num evento da Chanel na rua Cambon, quando de repente me levantou do chão para dançar.

Como é que os seus amigos e colegas se lembram do falecido Karl Lagerfeld um ano após a sua morte?

Abaixo partilhamos memórias como forma de comemorar a sua vida. 

 

Amanda Harlech, consultora criativa

Amanda Harlech é uma criativa britânica, escritora e musa de longa data de Lagerfeld. Continua a ser consultora criativa da Chanel, agora dirigida por Virginie Viard, que foi o braço direito de Lagerfeld durante três décadas.

"Eu falo com o Karl todos os dias, como costumava fazer", contou-me Harlech. “Ele ria da minha lentidão para fazer ‘as coisas’ - escrever, pintar, arrumar as pilhas de livros, restaurar o jardim jacobino da minha casa.“

"Tocar piano abre um mundo de memórias", continuou ela. “É quando ele está realmente perto de mim. Ele sempre quis tocar. E aqueles momentos em que eu estava a ensaiar Bach ou Brahms e ele estava a trabalhar noutra sala parecem estar a acontecer novamente em tempo real.”

"Ele ofereceu-me uma primeira edição do livro Street Haunting de Virginia Woolf. Adorava a história e o esbelto volume verde. Ambos amávamos seguir a sua assinatura inclinada e pontiaguda com o dedo. E foi outra vez como se derrotássemos o tempo linear e descobríssemos um presente perpétuo e reverberante.”

Certa vez, perguntei a Lagerfeld porque é que ele nunca visitou a exposição do seu trabalho, Karl Lagerfeld: Modemethode, que Harlech montou no Bundeskunsthalle em Bonn, Alemanha, no ano 2015 - uma reação típica do designer, que tinha uma atitude radical no que diz respeito a arrastar o passado. "Não tenho arquivo", declarou Lagerfeld. “Eu nunca vou aos arquivos da Chanel ou da Fendi. Não! Não! Não! Não! Não! Os arquivos que preciso estão na minha cabeça.”

Mas e os jovens designers que assumiram o controlo das Casas de Moda famosas? Eles também devem ser incentivados a desconsiderar o passado de uma empresa - ou a estudá-lo? "Não se deve exagerar nas emoções", disse Lagerfeld, que tinha 85 anos quando nos encontramos pela última vez. “Eu odiava ser criança. Eu queria ser adulto."

Bruno Pavlovsky, presidente de Moda da Chanel

Bruno Pavlovsky é o presidente de Moda da Chanel, abrangendo a Alta-Costura e o pronto-a-vestir. Ele escolheu Virginie Viard para substituir Karl Lagerfeld, depois de trabalhar com ela durante 30 anos, acreditando que ela tem a experiência e a imaginação para ter sucesso."A memória de Karl viverá para sempre nos nossos corações e pensamento", disse o executivo. “Deixou-nos uma energia incrível. Hoje podemos sentir isso no estúdio, nas oficinas da rua Cambon: o desejo de fazer o que está certo.”

"Acontecem coisas especiais quando trabalhas com alguém há mais de 30 anos. Ele nunca foi apenas um parceiro de negócios. Conectámos-nos bem e eu pessoalmente aprendi muito com ele, a sua visão e capacidade de ambicionar o melhor enquanto projetava o futuro.”

"Apresentamos dez coleções por ano, com dez histórias diferentes. Começamos sempre do zero. Cada coleção da Chanel deve inspirar e trazer novidade para a Casa. Era nisso que Karl Lagerfeld era muito bom. Assim como Virginie Viard agora. Nunca descansamos sobre o sucesso do passado.”

Silvia Venturini Fendi, diretora criativa

Ninguém compreendeu as necessidades de Lagerfeld mais do que a família Fendi. Juntou-se a eles no início da sua carreira, em 1967. E, por mais que pudesse estar ligado à Maison Chanel, esta conexão italiana era antiga e durou até à sua morte.

A diretora criativa da marca, Silvia Venturini Fendi, que trabalhou tão próximo de Karl durante as suas visitas a Roma, descreveu a ligação da Fendi a Lagerfeld: “Podemos dizer que, com a Fendi, havia um vínculo especial [entre Karl Lagerfeld e a minha família], mas também um grande apego à própria casa de Moda. Foi a relação mais longa da história da Moda. Uma história de amor de 55 anos.”

"Desde o início, Karl parecia um membro da nossa família - o único irmão entre todas as irmãs", continuou ela. “Ninguém percebeu o quão preciso Karl era no seu trabalho. Nos primeiros tempos, chegava com um livro cheio de desenhos. Mais recentemente, enviava-os digitalmente. Sinto muita falta do seu conhecimento e do seu sentido de diversão."

O próprio Lagerfeld partilhava os mesmos sentimentos: “Moda é sobre mudança, e eu gosto de mudança. Eu não sou apegado a nada. Sou muito fácil de trabalhar, porque pode ler-se os meus esboços. Não tenho certeza de que haja alguém na indústria hoje que saiba tanto quanto eu.” 

Claudia Schiffer, modelo

Quando todos estavam reunidos no Grand Palais em junho passado para o memorial de Lagerfeld, conversei com Claudia Schiffer, a modelo que foi descoberta por Lagerfeld. “A minha melhor lembrança foi em Viena, quando de repente ele começou a valsar e a rir histericamente à frente de toda a equipa quando estávamos a fazer uma campanha", lembrou Schiffer. “Esse foi o melhor lado que eu já vi dele. Além de dançcar, não se importava com nada. Foi simplesmente incrível. Ele amava valsa e dançava muito bem.”

“E depois houve os primeiros tempos, quando costumava fazer campanhas em Monte Carlo", continuou ela. “Ele organizou um piquenique inteiro debaixo de um sol muito quente e depois chegou de fato completo. Lembro-me dele dizer: 'Estou um pouco preocupado porque o meu cabelo fica frisado com a humidade'. Nós, claro, tínhamos todos vestidos de verão, enquanto ele estava calçado com botas na praia. E nesse momento ele mandou o mordomo entrar com o serviço de prata para o piquenique. Foi tão bom.”

Perguntei se lembrar a deixa triste. "Não é muito triste", respondeu Schiffer. “Ele viveu uma vida incrível. Deveríamos comemorá-la.”

Carla Sozzani

Assim como a família Fendi, Carla Sozzani e a sua falecida irmã Franca, ex-editora da Vogue Italia, conheceram o jovem e extravagante Karl Lagerfeld no início da sua carreira. "Eu conheci o Karl no final da década de 1960, enquanto ele trabalhava nas coleções da Krizia com Walter Albini", explicou Sozzani. “Eles eram ambos bonitos e ousados, seguros do seu futuro. Presenciei Karl e Carla Fendi quando se tornaram colaboradores e amigos mais próximos.”

"Com Anna Piaggi e Patrick Hourcade, tive a oportunidade de ver todas as coleções de Karl para a Chloé e tirar fotos delas com a Alfa Castaldi", continuou ela. “Cada coleção da Chloé era única; Acredito que quase todas as peças ainda estão muito claras na minha cabeça, para sempre surpreendentes.”

“É claro que eu estava lá na primeira coleção da Chanel, e depois as nossas interações cresceram pelo correio: Karl adorava escrever cartas. As suas longas cartas começaram quando eu abri a galeria; eram sobre fotografia e colecionar fotografia - uma paixão que tínhamos em comum. Também compartilhámos o amor pela edição de livros; ambos abrimos livrarias por pura paixão.“

“O amor e paixão pelo seu trabalho foram a força motriz de Karl", observou Sozzani. “Ele será sempre o exemplo de uma vida dedicada à integridade da sua visão. A precisão que ele trouxe à sua vida será para sempre lendária."

Como é que Sozzani vê o legado de Lagerfeld, um ano depois da sua morte? "Acho que ele ainda está aqui, ainda entre nós de uma maneira incrivelmente forte - de uma maneira que ele provavelmente odiaria!" disse ela. “Na verdade, ele tem um legado incrível. Virginie está a mantê-lo vivo, mas a avançar ao mesmo tempo - será um ato de equilíbrio muito difícil. Mas vemos a Moda através dos olhos de Karl. Uma parte da Moda sempre será dele.”

Será que Lagerfeld concordaria com o seu catálogo de realizações e esses aplausos do mundo inteiro? Algumas das suas últimas palavras repetiam uma das suas filosofias favoritas, sobre viver no presente: “Há um ditado alemão-judeu muito famoso que eu adoro; uma pequena e doce frase com a qual vivo: ‘Não existe crédito no passado’.”

Hubert Barrère, diretor criativo

O diretor artístico e criativo da Maison Lesage, onde é responsável pelos bordados do atelier - parte do grupo Paraffection de Chanel de criadores de artesanato. Escolheu lembrar o Lagerfeld que conhecia há 21 anos como se estivesse a escrever "Um poema a Karl”.

“Acho que me proibi de sentir qualquer pathos, fraqueza, qualquer coisa que Karl odiasse. Por respeitá-lo e à sua maneira de agir e pensar, impus a mim mesmo uma proibição tácita de tudo o que é sentimentalismo e queixas.”

“Nos 21 anos em que trabalhei para a Chanel, foi para ele… Durante 21 anos, ele foi a Chanel. Durante 21 anos ele foi a minha espinha dorsal. Durante 21 anos, eu queria ser digno e agradá-lo; tudo permanece gravado na minha memória. O seu conhecimento enciclopédico no qual eu me adorava perder; a sua capacidade de trabalhar incansavelmente; a sua pugnacidade; a sua capacidade natural de estar sempre um, dois, três passos à frente de tudo. A sua capacidade quase psíquica de entender o futuro e adaptá-lo ao presente. O seu devastador sentido de humor que eu bebi como água; a sua atitude casual que escondia uma análise nítida e implacável. A sua bondade para com os que o rodeavam; a sua grande elegância; a sua capacidade de rir de si mesmo... Nada nele era mediano, muito menos medíocre!

“Servi-lo fez-me crescer; Eu não me teria tornado quem sou sem ele. De 19 de fevereiro a julho, para as coleções pronto-a-vestir, Cruise e Haute Couture: estar imerso no meu trabalho, trabalhar assiduamente, estar com Virginie, ser como dedos da mesma mão, fazer, imaginar, criar... Essas eram as minhas únicas preocupações. E então chegava o verão e as férias, hora de descansar, passear, baixar a guarda... Mas também a perceção da atração e do vazio abissal que ele deixou na minha vida."

“Fiquei muito deprimido quando voltei ao trabalho em setembro, uma profunda tristeza tomou conta de mim, nada me interessou, nem mais amor, nem mais alegria… Felizmente, a coleção de artesanato foi (com e graças a Virginie) um momento de plenitude e energia renovada. O desejo de desafio, de me superar a mim mesmo, voltou mais uma vez. Enfim, estou de volta."

“Com Virginie, um novo capítulo da história da Chanel está a ser escrito, tão emocionante quanto o de Karl, mas diferente, e ao mesmo tempo ainda profundamente enraizado nas raízes da Chanel. Conhecíamo-nos há muito tempo, o vínculo com Virginie é uma motivação essencial para mim. Algo engraçado: lembrei-me de que, quando Karl ainda estava connosco, eu perguntava a Virginie: ‘Achas que Karl vai gostar? Achas que é isso que ele quer?’ Hoje não passa um dia sem que Karl esteja nos meus pensamentos. Tão surpreendentemente ou naturalmente (não tenho a certeza) deu-se uma reversão. Muitas vezes pergunto a Karl: ‘Achas que a Virginie vai gostar? Achas que ela sente que está alinhada com a visão dela sobre o que Chanel é hoje?’ Há tantas perguntas para as quais não recebo respostas, mas o próprio ato de as perguntar provavelmente faz-me contemplar o esboço de uma resposta!”

Como escreveu Lampedusa no seu romance, The Leopard: ‘Tudo deve mudar, para que as coisas permaneçam iguais'.

Karl Lagerfeld e Virginie Viard, no final bow da primavera/verão 2019 © Getty Images
Karl Lagerfeld e Virginie Viard, no final bow da primavera/verão 2019 © Getty Images

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