Nervos à flor da pele. E pele à flor dos nervos. Pedimos a uma dermatologista para nos explicar como é que a saúde mental afeta a nossa pele – e vice-versa.
Nervos à flor da pele. E pele à flor dos nervos. Pedimos a uma dermatologista para nos explicar como é que a saúde mental afeta a nossa pele – e vice-versa.
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Por esta altura, é possível que já esteja cansada de ouvir falar, ler sobre e falar sobre caos. Do exausto “são tempos incertos” ao ainda mais gasto “novo normal”, os telefonemas com as amigas, as conversas com os familiares, as partilhas no Instagram e a avalanche de notícias que diariamente nos bombardeiam são reminders constantes de que o mundo, à falta de melhor expressão, está mesmo de pernas para o ar. Tradução? É possível que se esteja a sentir mais ansiosa e stressada que nunca – e também é possível que a sua pele esteja a colher os frutos disso mesmo. “A saúde mental e as doenças dermatológicas estão claramente associadas”, diz a dermatologista Judite Pereira à Vogue Portugal, referindo que a ligação entre pele e mente se explica pelo facto de existir uma origem biológica comum entre o sistema nervoso central e a pele.
“Podemos dizer que a pele é como um sensor, que estabelece plena ligação entre o mundo externo e o mundo interno, reagindo de forma mais ou menos acentuada às emoções despertadas por diferentes estímulos.” Intimamente ligadas, mente e pele vão assim influenciar-se mutuamente – e essa relação é mais complexa e profunda do que podemos imaginar. “Na sociedade atual, o nível de exigências, quer laborais quer da vida pessoal, pode originar determinados níveis de stress e ansiedade, com grande impacto a nível de conflitos internos, temores, medos e angústias, que alteram a nossa razão e nos convertem em vítimas da nossa própria situação”, explica Judite Pereira, referindo a importância de compreendermos porque é que o stress e a ansiedade nos afetam.
“Sendo a pele um órgão amplamente visível, com uma função de comunicação e integração social, diferentes doenças cutâneas afetam seriamente a nossa autoimagem, com repercussões de caráter estigmatizante, o que já por si origina ansiedade, depressão e consequentemente a alteração da qualidade de vida”, elabora a dermatologista. “É como se fosse um ciclo vicioso. Aumenta a vulnerabilidade individual, o que atua já como um fator precipitante do transtorno mental, que influi no agravamento e desencadeamento de algumas doenças dermatológicas, como por exemplo o acne, a rosácea, a psoríase, a dermatite atópica, a alopecia, e até mesmo o prurido.”
“A saúde mental e as doenças dermatológicas estão claramente associadas.”
Sobre aquilo que acontece à nossa pele quando vivemos momentos de maior stress ou ansiedade, a dermatologista começa por referir que, “às vezes, de forma imediata, o stress e a ansiedade podem desencadear reações cutâneas individuais, bem conhecidas, como o rubor, a palidez, o prurido, a sensação de desconforto, o ardor, e o aumento da sudorese.” Como explica Judite, tal acontece “porque existe uma resposta exagerada dos nossos vasos cutâneos à libertação de determinadas substâncias, as substâncias do stress, digamos.” Por outro lado, aponta, “as condições de stress emocional, ansiedade e depressão, podem agravar também, em maior ou menor grau, a patologia cutânea de que o doente já padecia, ou precipitar o seu aparecimento, embora não seja a causa”, referindo como exemplos o acne, a psoríase, a dermatite atópica, o vitiligo, e os herpes. “Dado que o leque de doenças dermatológicas enquadradas nas psicodermatoses é muito amplo, é conveniente diferenciarmos essencialmente dois tipos: temos, primeiro, os transtornos psíquicos com repercussões dermatológicas e, por outro lado, os transtornos dermatológicos com repercussão psíquica.”
Nos transtornos psíquicos com repercussão dermatológica, explica Judite Pereira, “um dos principais, e que hoje é muito frequente na sociedade, é o transtorno obsessivo-compulsivo, que se caracteriza por escoriações neuróticas e tricotilomania”. Igualmente comum nos dias de hoje, refere, é o transtorno dismórfico corporal. “Neste caso, a pessoa olha-se ao espelho e vê sempre alguma coisa que não aceita a nível corporal”, esclarece a dermatologista, referindo que as pessoas que convivem com o transtorno dismórfico corporal apresentam “a chamada hipocondria cutânea; muitos sintomas, muitas queixas, mas poucos sinais de doença orgânica.” Habitualmente, diz Judite, aquilo que apresentam são lesões cutâneas benignas, sendo que as principais zonas de preocupação são o rosto, as áreas pilosas e os genitais. “A nível da face, normalmente, queixam-se de tudo: de vermelhidão, dos poros dilatados, de cicatrizes, das manchinhas pigmentadas, dos pequenos vasos visíveis. Nós às vezes temos que dizer ao doente para nos mostrar ao espelho onde é que ele vê as lesões, porque nós não as vemos. É bastante frequente.”
Neste campo que é “um mundo”, como o descreve a dermatologista, observam-se ainda casos de algumas fobias, em que “o doente tem um medo irracional de adquirir ou sofrer certas doenças, ou porque já teve alguma doença da qual ficou curado, ou por algum amigo ou familiar a ter.” “O medo destas infeções leva sempre a uma lavagem excessiva das mãos, que pode produzir uma dermatite irritativa. São pessoas que estão sempre preocupadas, e a limpeza é o escape para tentar eliminar o que eles veem”, explica. “Estes doentes às vezes também apresentam a chamada cancerofobia, têm medo de sofrer malignização de algum sinal da pele. O doente fica obcecado, consulta o dermatologista imensas vezes, ao longo do ano, por esse motivo. Por um lado é bom, mas por outro lado temos a razão pela qual o fazem. Ainda temos outro aspeto que é a chamada tanorexia, que é um desejo obsessivo de ficar com a pele morena. Os doentes não aceitam estar pálidos.” Para além disso, existem os transtornos da conduta alimentar, tanto a anorexia nervosa como a bulimia, que têm igualmente repercussões a nível dermatológico. “Podem aparecer com frequência aqueles pelos muito fininhos e curtos. Também é frequente as alopecias, os eczemas e ainda as estrias. Há todo um défice nutricional que se reflete a nível da pele.”
“Temos, primeiro, os transtornos psíquicos com repercussões dermatológicas e, por outro lado, os transtornos dermatológicos com repercussão psíquica.”
Sobre os transtornos dermatológicos com repercussão psíquica, começa por esclarecer Judite, “vamos ter doenças de dermatologia que têm repercussão a nível psíquico, e/ou agravadas por fatores emocionais, stress e ansiedade. Nós temos uma doença, essa doença desfigura-nos, de certa forma, e cria o stress, que vai agravar por si a própria doença.” Aqui, refere, “podemos enquadrar o acne, a psoríase, a rosácea, a dermatite atópica, o vitiligo, até mesmo o aumento da sudorese”, sendo que nestes casos “o stress, a ansiedade ou a depressão não são a causa, mas podem agravar, alterar a evolução ou precipitar alguns surtos de doenças dermatológicas, e até em diferentes proporções.”
Começando pelo acne, a dermatologista explica que “a ansiedade, o stress e a depressão podem aumentar os surtos, e ao mesmo tempo o facto de ter acne pode ser já causa destas mesmas situações, principalmente nas mulheres, que até chegam a escoriar as lesões de acne”. “Normalmente, isto está associado a transtornos de imagem corporal. Tudo se vai ligando. Têm uma baixa autoestima, com ansiedade e depressão”, esclarece. “Estas escoriações que fazem, muitas vezes, já são de um transtorno obsessivo-compulsivo e de personalidade imatura. A pessoa olha-se ao espelho, vê acne, e começa a escoriar, o que não vai melhorar o acne.”
Quanto à rosácea, “que se caracteriza por uma pele vermelha a nível da face, que agrava em muitas situações com a exposição solar, as diferenças de temperatura, e a nutrição, e com os choques emocionais”, Judite explica que “existe um desequilíbrio vascular, local, a nível da face, e um aumento da sensibilidade responsável pela vermelhidão facial”. Por outro lado, esclarece, estas manifestações vão ter consequências psíquicas. “A rosácea normalmente vem, e vem para ficar, e isso tem as suas consequências a nível da depressão, da ansiedade, que depois agrava o ciclo.” No caso da psoríase, também muito comum, observa-se “uma grande implicação na qualidade de vida psicossocial e laboral, devido a ser uma doença crónica e que evolui por surtos, e que pode manifestar-se com lesões extensas, e até mesmo desfiguradoras, que levam à alteração da imagem corporal.”
“A psicodermatologia surge pela necessidade de considerarmos uma visão mista da doença dermatológica. Podemos dizer que ela é uma disciplina intermédia entre a dermatologia, a psiquiatria e a psicologia.”
Do problema à solução, Judite Pereira começa por referir que, “para obtermos bons resultados dermatológicos, e até mesmo cosméticos, devemos efetuar sempre um tratamento global”, numa abordagem que é ecoada pela psicodermatologia. “A psicodermatologia surge pela necessidade de considerarmos uma visão mista da doença dermatológica. Podemos dizer que ela é uma disciplina intermédia entre a dermatologia, a psiquiatria e a psicologia”, esclarece a dermatologista. “Esta disciplina permite aos dermatologistas um maior conhecimento da relação entre transtornos cutâneos e os problemas psicológicos, a fim de dar uma melhor resposta terapêutica, e mais específica, para além do tratamento dermatológico.” Apesar de não existir um tratamento único para as psicodermatoses, estando este dependente “do tipo de doente e da intensidade do problema que apresenta”, Judite refere que, em termos gerais, “a pele destes doentes é sensível”.
“É fundamental reforçar a hidratação diária da pele, a fim de restaurar e manter o equilíbrio fisiológico da barreira cutânea”, aconselha. “Devem ser utilizados produtos de higiene suaves, com pH entre 4,5 a 5,5, e produtos cosméticos fáceis de espalhar, que não sejam muito espessos. O doente normalmente rejeita esse tipo de cremes, quando damos algum creme que não é fluido, o doente pode queixar-se de que é muito pegajoso. A parte cosmética e a fluidez ao tato é muito importante. Devem ser produtos fáceis de espalhar, não irritantes, e com uma ação ao mesmo tempo emoliente, regeneradora, calmante, anti-inflamatória e descongestionante.” Para além disso, a dermatologista recomenda produtos hipoalergénicos, não comedogénicos, sem álcool e sem fragrância, referindo ainda os cosméticos com ação biológica, que inibem a inflamação neurogénica. “Controlando esta inflamação, podemos bloquear as sensações de desconforto, vermelhidão, ardor”, esclarece. “Estes cosméticos aumentam muito o grau de tolerância da pele reativa, dando mais conforto, a curto e longo prazo, e melhorando a qualidade de vida.”
E se o envelhecimento for uma preocupação – porque, como refere Judite Pereira, “numa sociedade cada vez mais exi- gente, o aspeto das rugas também produz ansiedade e stress, e o mimo que podemos dar a nós mesmas é aplicar um certo cosmético” – a dermatologista também aconselha utilizar cosméticos para pele sensível, e ter debaixo de olho ingredientes ativos como a gluconolactona, o retinaldeído (um percursor do ácido retinoico), a vitamina C, o DMAE (um bioestimulador cutâneo com efeito lifting e de firmeza) e o ácido alfa-lipóico (um antioxidante).
“O corpo e a mente formam uma unidade integrada, e por esse motivo a saúde não é só física, orgânica, mas também psíquica.”
Numa altura em que olhamos para o nosso bem-estar de uma forma cada vez mais holística, é importante não descartarmos a influência que a nossa saúde mental tem na nossa pele, e a influência que a saúde da nossa pele tem na nossa mente. “Quando não existe uma resposta evolutiva, favorável ao tratamento correto instituído, devemos sempre pensar na possibilidade de existirem fatores psíquicos, sociais, laborais, que dificultam normalmente a boa evolução da doença em si, e o doente não sabe porquê”, refere a dermatologista. “Há todo um entorno que às vezes nos passa despercebido. Nós não vemos, mas ele está lá e interfere no nosso dia a dia. Se a resposta terapêutica é boa, então o stress muitas vezes passa até a um segundo plano. No início a doença criou o stress emocional, que afeta a imagem, e quando se começa a ver uma certa resposta terapêutica, esta parte emocional e este stress já passam para o segundo plano.”
Como conclui Judite, a dermatologia é consciente dos diferentes aspetos das doenças dermatológicas, que fazem parte de um todo no ser humano integrado. “O corpo e a mente formam uma unidade integrada, e por esse motivo a saúde não é só física, orgânica, mas também psíquica. Por este motivo, não devemos deixar de lado os fatores emocionais e psicológicos, dado que a doença da pele pode ser precipitada e influenciada pelos mesmos. Devemos oferecer sempre um tratamento integrado”, defende a dermatologista. “Desde os anos 70 que se defende o modelo integrado biopsicossocial; de forma global, devemos considerar no ser humano a interação do aspeto biológico, psicológico e social. A alteração de um destes aspetos terá sempre uma repercussão na saúde.”
Artigo originalmente publicado na edição julho/agosto 2020 da Vogue Portugal.
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