Nasceu na Venezuela, mas toda a gente sabe que Katty Xiomara é do Porto. Por isso, dizer que é um dos nomes Incontornáveis do panorama de Moda nacional é do mais correto que há, da primeira maiúscula ao último ponto final.
Nasceu na Venezuela, mas toda a gente sabe que Katty Xiomara é do Porto. Por isso, dizer que é um dos nomes Incontornáveis do panorama de Moda nacional é do mais correto que há, da primeira maiúscula ao último ponto final.
Aliás, com a segurança de um ponto final é o modo como encara as coisas - não há espaço para reticências ou pontos de interrogação, mesmo num meio que dá espaço para tais desvios gramaticais. Singrar no mercado da Moda, nomeadamente por terras lusas, não é tarefa fácil e as dúvidas são naturais, mas Xiomara não deixa que a assolem: "Sim, muitas vezes [penso em desistir e mudar de área], mas esse pensamento não o tomo como vacilante e sim como fortificante. Formar uma empresa própria, criar postos de trabalho, assumir compromissos financeiros, arriscar em novos mercados… todas estas são responsabilidades desproporcionadas para a largura das minhas costas… por isso, não sinto vergonha alguma em admitir que muitos foram os momentos de incerteza, o atual momento por exemplo, é um dos mais veementes." Não é para menos: o efeito Covid-19 está a deixar mazelas um pouco por todos os setores, mas a Moda de autor sofre particularmente pelas curtas margens de lucro que são constantemente reinvestidas na produção seguinte - sem produção, o ciclo fica interrompido. Mas se o histórico de Xiomara mostra alguma coisa é que a mulher do Norte - mudou-se para a Invicta com apenas 18 anos - torna qualquer dos limões que a vida lhe possa trazer na limonada mais apurada e aproveitada até à ultima gota. Porquê? Porque não deixa nada sem pontuação, por mais que haja vírgulas pelo meio: "Se a ideia de desistir é recorrente, a ideia de prosseguir triplica essa recorrência, se esse não fosse o caso, já não estaria aqui. Mas, por exemplo, quando embarquei na aventura de colorir uma parede de 60 metros no antigo Matadouro Municipal do Porto para servir de tela para o desfile da coleção SS18, muitos foram os momentos, essencialmente por falta de resposta nos pedidos de apoio, em que achei que seria completamente inviável executar a ideia e que o melhor seria desistir. Felizmente, a persistência levou a melhor e, assim como eu, 14 artistas urbanos e algumas empresas, acreditaram no projeto e ficaram até ao fim para lhe dar vida. Como consequência, o resultado foi extremamente gratificante para todos."
Persistência é algo que tem pontuado a sua carreira de cerca de duas décadas: preenche o calendário de Moda de Portugal desde 1998, sendo que só em 2001 nasce a marca homónima. Com uma evolução ponderada e, acima de tudo, fiel a um ADN que faz da feminilidade um cartão de visita, o jeito girlie com que cose as suas linhas só é suplantado pela intemporalidade das suas peças - aliás, se a marca fosse um slogan, diz-nos, seria "Sente o que vestes, não disfarces a tua feminilidade!" e ainda, "Equilibrio entre o IN e o Intemporal!" - sublinhem-se os pontos de exclamação. Ao longo desses 20 anos na área, foi criando a marca de forma sustentável, primando pelo "crescimento bastante orgânico, mantendo uma escala pequena, suportada também pela prestação de serviços nos mais diversos setores da moda, do espetáculo e do design.", explica. Começa a explorar os mercados internacionais, participando em feiras como a Bread & Butter em Berlim e Barcelona, o Project Show em Las Vegas, o Who's Next em Paris, o Coterie em Nova Iorque e no projeto Weareurope em Tóquio. O ano de 2007 traz-lhe uma merecida morada com montra para a rua, ao inaugurar a sua loja/atelier na Rua da Boavista, Porto, e entre 2013 e 2017 viaja até Nova Iorque para apresentar as suas coleções naquela semana de Moda. As conquistas não passam despercebidas: recebe o prémio Silver Winner - IDA International Design Awards, em 2014, e repete o feito no ano seguinte, acumulando ainda uma Honorable Mention. A imagem corporativa da marca foi reconhecida e premiada pela revista americana HOW, com o European Design Annual, bem como com uma Menção Honrosa no concurso mundial, em 2002. Além disso, tem feito páginas em diversas edições internacionais como a Design Secrets da Rockport, a Boxed and Labeled da Gestalten, a Bok Of The Big Bags, Tags and Labels da Collins, ou a Urban Fashion Flavor da Monsa. Em 2020, faz ainda parte dos premiados pela organização OpenMyMed Prize 2020-21 (Maison Mode Méditerranée - MMM) e, além dos galardões e reconhecimentos, ainda recebe ilustres visitas, como a da renomada Suzy Menkes, em 2018, ávida por conhecer o seu trabalho.
A sustentabilidade da marca, ou seja, o seu crescimento lento, mas seguro, que garantiu estabilidade e estabelecimento de marca, traduz-se também na sustentabilidade com que encara o design e a sua produção: nas coleções pouco tímidas no uso da cor e com predileção pelos detalhes, o equilíbrio entre a elegância das peças e o toque de leveza e humor encerra um propósito ainda maior - o aproveitamento máximo das formas e matérias-primas, reduzindo o seu desperdício e privilegiando materiais mais transparentes na sua cadeia produtiva. Essa atenção e dedicação é transversal a todo o seu percurso, feito com paixão e fidelidade aos seus principios. Talvez por isso lhe seja tão dificil escolher apenas uma, mesmo que seja apenas para exemplificar o melhor reflexo do seu ADN e não denunciar de forma alguma qualquer preferência: "É sempre muito difícil escolher uma única peça, parece traição… além do mais é limitativo, acho que o meu trabalho tem várias fases evolutivas e considero-as a todas importantes. Poderia talvez escolher uma capa da coleção SS18 que reflete de forma bastante direta o tema da coleção Parachute Trip”, arrisca.
Agora, já não fala bem em estações. Tal como muitos dos coleças de profissão, criar linhas sazonais é entrar numa cadência de apresentações e trabalho produtivo demasiado exigente, nomeadamente para etiquetas pequenas, passível de não ser nem sustentável, nem criativamente pertinente: "Tenho vindo a fazer coleções algo desprendidas das estações, mais intemporais.", explica a designer à Vogue, que além da marca já criou gamas paralelas, como o swimwear Xiomar. "Aquela que representa o verão 2020 tem o nome de After Now - Depois do agora, um depois, ou um 'continuo agora…?'. E conta uma história mais abstrata na forma e mais concreta na função, pretendendo interagir diretamente com as 'nossas' pessoas, por isso, a apresentação da coleção foi mais próxima, num formato mais interativo e de partilha. Esta coleção oferece opções de maior versatilidade na vestibilidade das peças, assim como uma nova forma de passar a mensagem, pois penso que, cada vez mais, como sociedade, sentimos a necessidade de comunicar numa linguagem comum e ao mesmo tempo única e individual. Vivemos contradições constantes e, na procura de dar significado a essas contradições, alguns procuram códigos, os mais criativos viajam desde os logogramas dos hieroglíficos Maias ao complexo e indecifrável código de Serafini, na tentativa de descobrir no passado uma revelação sobre o futuro. Esta coleção não revela um novo código ou uma nova linguagem, mas inspira-se nesta necessidade. Representamos a figura da mulher como um totem, explorando a sua essência - criar, nutrir e transformar - naturalmente representada por movimentos circulares. No círculo, o início é também o fim, o círculo é vida e, assim sendo, o depois de agora não existe, é uma constante", remata.
Katty Xiomara, After Now © Portugal Fashion
Katty Xiomara, After Now © Portugal Fashion
"A coleção seguinte, que podemos considerar como inverno 2020/2021 fala-nos de conexões, desta nova forma de comunicar e do facto de ela ter desconectado tantas outras ligações que nos eram naturais. Ganhamos velocidade, amplitude e conhecimento, tornamo-nos globais e expansivos - abrimo-nos para o mundo! Contudo a caminho deste fantástico desenvolvimento, fomos perdendo o verdadeiro contacto humano e a espiritualidade começou a materializar-se. Mostramo-nos tão abertamente que, para nos proteger, escondemos a nossa alma e escondemo-la tão bem que já nem sentimos a sua presença, deixando fugir fingidamente a fé e o sentimento único de acreditar. Esta coleção chama-se Alma e é uma pequena amostra de que as ligações pessoais importam, e as ligações criativas nos enriquecem, queremos encontrar a alma e fazê-la ver a luz do dia, mesmo que isso implique chorar ou rir em desalinho."
Uma deixa para falarmos em parcerias, mas acima de tudo, nas ligações que se fazem dentro da indústria a nível nacional. "Eu gostaria de pensar que é possível e mobilizo-me nesse sentido, mas obter respostas é difícil, somos todos muito individualistas.", opina, quando lhe perguntamos se a união no setor é possível ou utópica. "A vontade parece existir, mas é ainda muito tímida e cheia de receios, ninguém arrisca. Contudo, continuo a cogitar essa possibilidade. Gosto de pensar que se o mundo se encarregou de nos demostrar que algumas das fantasias distópicas da nossa literatura são possíveis, então as ideias utópicas também o poderão ser, é uma questão de equilíbrio." É por isso que não descarta a hipótese de potenciais colaborações com colegas da área, ainda que saiba que casar ADNs tem sempre algum nível de dificuldado asociado: "neste meio a individualidade é muito grande. Independentemente de saber se aceitariam ou não, penso que poderia ser interessante colaborar com a Alexandra, da Pé de Chumbo, ou com a Susana Bettencourt, pois ambas possuem um cunho bastante pessoal. As duas exploram universos e métodos de trabalho bem distintos do meu, mas ao mesmo tempo viável de estabelecer pontes.", arrisca. Ainda que essa joint venture não seja uma realidade, os nomes já estão juntos, pelo menos, neste Project: Vogue Union, que pode servir de ponto de partida para um diálogo mais prolongado e abrangente - é pelo menos esse o seu propósito.
Até lá, é deixar-se apaixonar pela etiqeta com este artigo e dirigir-se à loja de Xiomara, na Rua da Boavista, 795, no Porto (T. 220 133 784) para #comprarportuguês (ou fazê-lo através da e-shop kattyxiomara.com). E se estiver por lá, evite perguntar as tendências da estação ou a coleção numa palavra ou qual é a mulher Katty Xiomara - são normalmente as que os jornalistas mais colocam; mais vale pô-la a falar de "talvez algo mais profundo, algo difícil de responder… deparo-me muitas vezes com sentimentos de dualidade que se debatem entre a futilidade e a utilidade… tento amparar-me na ideia concreta de que a Moda pode ser útil… Isto é, o nosso papel é proporcionar beleza e estímulo visual, mas de que forma isso pode realmente contribuir para o estado de espírito das pessoas? Podemos realmente ajudar a construir uma personalidade? A beleza pode ser útil? Podemos produzir beldade responsável? Eu acredito que a resposta a estas questões é sim, podemos, mas nem sempre o conseguimos. Ou então, perguntas diretamente ligadas a complexidade de execução das coleções, como lidar com o desaparecimento dos nossos artesãos? E com a falta de qualificação (à moda antiga)? O porque do preconceito do consumidor nacional perante a produção nacional?… mas, aqui, de facto, as repostas seriam mais complexas de desvendar." Talvez não sejamos nós a fazer as perguntas, talvez seja Katty a colocar as questões mais pertinentes, quando não está a colocar um ponto final nas coisas.
Mas mesmo quando o coloca, é um ponto final que é ponto final parágrafo. Porque a segurança deste ponto final não é o sinónimo de fim. Pelo contrário. É apenas a abertura de um novo capítulo escrito por Katty Xiomara.